Editorial 246

Somos mesmo contra a violência?

Goiás 246
Somos mesmo contra a violência?

Dentro das pautas sensíveis aos candidatos em ano eleitoral está o tema da segurança. As mulheres querem poder andar de ônibus sem medo, os trabalhadores querem viver livre de assaltos, famílias inteiras querem nunca ter que lidar com estupro de algum ente familiar, atletas querem treinar sem ter equipamentos roubados. O discurso, no entanto, parece sempre extrapolar a capacidade dos candidatos já que as cidades estão cada dia mais violentas, e a sensação de que a obrigação de se proteger parece ser cada dia mais um problema individual. Mas, se vivemos em sociedade, como a violência pode ser combatida individualmente?


Violência em Goiás


De acordo com o governo de Goiás, do primeiro semestre de 2023 para esse ano, a quantidade de homicídios passou de mais de 500 para 464. Feminicídios tiveram uma redução de 37,5%. Esse levantamento feito pelo Observatório de Segurança Pública de Goiás mostrou também que houve um aumento de 338% no acompanhamento de medidas protetivas feito pela Polícia Militar. Em 2023 foram mais de 28 mil medidas e, em 2024, mais de 97 mil.

Apesar dos dados registrarem aumento em medidas protetivas, e isso ser politicamente celebrado, é preciso pensar que esses números representam pessoas com medo que precisaram acionar a justiça. Além disso, que pessoas são essas? Tem algo em comum? É um problema apenas delas?



Olhando para as maiores vítimas da violência


Meninas negras de até 13 anos são maiores vítimas de estupro no Brasil; crime cresceu 91,5% em 13 anos. O número de estupros no Brasil cresceu e atingiu mais um recorde. Em 2023, foram 83.988 casos registrados, um aumento de 6,5% em relação ao ano anterior. O número representa um estupro a cada seis minutos no país. Isto é o que revela o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado neste mês.


Este é o maior número da série histórica, que começou em 2011. De lá para cá, os registros cresceram 91,5%.


Do total de casos, 76% correspondem ao crime de estupro de vulnerável – quando a vítima tem menos de 14 anos ou é incapaz de consentir por qualquer motivo, como deficiência ou enfermidade.

As maiores vítimas do crime no país são meninas negras de até 13 anos. Veja o perfil das vítimas:

  • 88,2% são do sexo feminino

  • 61,6% tem até 13 anos

  • 52,2% são negras

  • 76% eram vulneráveis


A violência acontece majoritariamente dentro de casa – em 61,7% dos casos o estupro foi registrado na residência. Na sequência, está a via pública (12,9%). Entre as vítimas de até 13 anos, em 64% o agressor é um familiar, e em 22,4% conhecidos.


"Todas as formas de violência contra a mulher cresceram", afirma Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "E é uma variação que sabemos que há subnotificação porque alguns estados não classificam adequadamente os feminicídios."


Além dos estupros, todas as modalidades de violência contra mulheres cresceram: feminicídio e tentativa, violência doméstica, Stalking, Importunação sexual, Violência psicológica.


Outra violência crescente nesses dados são os casos de racismo, subiram 127% em 2023, quando foram registrados 11.610 boletins de ocorrência. No ano anterior, haviam sido 5.100.

O assassinato de LGBT+ também cresceu. No ano passado, foram 214 vítimas, um aumento de 41,7%.


Um problema das mulheres é um problema de todos


Dia 25 último, foi o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, com o objetivo de resgatar as lutas e as resistência das mulheres negras da América Latina e do Caribe contra o racismo, a discriminação e a violência de gênero.


Nós, mulheres negras latino-americanas, temos muitas coisas em comum com as mulheres negras africanas, com as mulheres negras asiáticas, com as mulheres negras europeias, mas temos um conjunto de especificidades que está ligado à nossa colonização, aos nossos processos históricos, que vão imprimindo questões específicas na nossa trajetória. A questão do racismo é estruturante da sociedade latinoamericana por conta do uso de mão de obra escravizada e isso nos dá uma identidade desde sempre. Isso também vai ter impactos nas questões de gênero de forma significativa — declara a historiadora.


A Natalina, menina negra de Conceição Evaristo, ia fazer 14 anos. Cuidava dos irmãos menores. Alguma coisa ia crescer lá na barriga dela e ela não queria. A mãe da menina se perguntava como iria cuidar de mais uma criança, numa casa em que já havia tanta gente. Ela se perguntava o que iria fazer com o filho da filha. O que poderia ser a arte imitando a vida é, na verdade, um retrato fiel e também uma denúncia – nossas meninas negras têm estado fora da proteção que lhes permitiria ser apenas… meninas - disse Juliana Brandão, Doutora em Direitos Humanos pela USP.

O caso ocorrido em Goiás da menina de 13 anos envolvida em uma disputa entre seu pai, a justiça e o hospital para conseguir abortar após um estupro escancara a indiferença que temos diante da violência que acontece com as brasileiras como um todo. Quando uma criança precisa lutar inclusive contra a justiça goiana a fim de alcançar o que a lei lhe resguarda, é preciso que nos perguntemos que sociedade absurda estamos construindo?

A Defensoria Pública argumentou que as decisões do tribunal goiano que negaram o acesso ao procedimento ignoraram a vontade da vítima e a recomendação médica do profissional que a acompanha, “incorrendo em grave constrangimento ilegal à sua vida e liberdade”. Além disso, no documento técnico elaborado pela equipe do Hospital Estadual da Mulher (Hemu), em Goiânia, os médicos alegaram que a antecipação do parto apresenta “elevado risco de complicações”,  causaria revitimização da menina, além do fato de que a taxa de sobrevida do feto seria baixa. De acordo com os defensores públicos, a menina também apresenta sofrimento psíquico e ameaça tomar medidas para interromper a gestação por conta própria.

Que sociedade é essa que não se compadece do sofrimento de mulheres e meninas violentadas e prioriza um parto com extremo risco e poucas chances de sobrevivência de um feto? Essa sociedade definitivamente não é um lugar seguro para mulheres, nem mesmo um lugar para se desejar viver. Somos mesmo contra a violência se relevamos tamanho violência contra nossas meninas?





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