Megaincêndios na Amazônia intensificam alerta sobre colapso e possível ponto de não retorno
Um incêndio iniciado em 8 de agosto já consumiu mais de 67 mil hectares na Terra Indígena Kayapó, na região do Xingu, de acordo com dados do programa Servir-Amazônia, da Nasa, que monitora a região por satélite.
Com área equivalente à de Florianópolis, esse megaincêndio é apenas uma das muitas frentes de fogo na Amazônia, sendo classificado como tal por queimadas com mais de 10 mil hectares, algo cada vez mais frequente.
"Nós estamos entrando não só na era do fogo, mas na era dos megaincêndios. É bem catastrófico", afirma Erika Berenguer, cientista sênior na Universidade de Oxford.
De acordo com a pesquisadora, o primeiro grande incêndio no Brasil foi detectado em Roraima, em 1998, durante o ano de El Niño, assim como 2023 e 2024 —este último, um dos cinco mais intensos já registrados. O fenômeno prejudica a incidência de chuva sobre a Amazônia e é intensificado pelas mudanças climáticas.
"Num clima normal não era para a floresta estar queimando. Ela é muito úmida, o fogo naturalmente morre. Mas o que a literatura mostra é que, na amazônia como um todo, já houve um aumento de temperatura de 1,5°C em relação aos anos 1970", explica a bióloga, referência nos estudos sobre impactos do fogo nas florestas tropicais.
De janeiro a agosto de 2024, mais de 1,77 milhão de hectares de floresta queimaram na Amazônia brasileira, de acordo com o MapBiomas. Esse número representa cerca de 33% do total atingido no bioma no período, sendo que outros 38% queimados são áreas de agropecuária, em sua maioria pastagens, e 30%, vegetação nativa não florestal.
Neste ano, a taxa de áreas de floresta impactadas pelos incêndios na Amazônia quase dobrou em relação ao mesmo período de 2023, quando representava cerca de 17% do total.
No último mês, foram registrados mais de 38 mil focos de incêndio no bioma, o maior número desde 2010. Em apenas 16 dias, setembro já teve mais de 30 mil focos, superando os 26 mil registrados em todo o mês em 2023, de acordo com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Essa mudança no perfil das queimadas evidencia o nível extremo de seca e gera preocupação de que a floresta se aproxime do colapso, destacam cientistas.
"[Na seca,] a floresta fica mais inflamável e, se tem atividade de fogo perto dessa floresta mais inflamável, ela vai queimar mais", afirma Ane Alencar, coordenadora do MapBiomas Fogo e diretora de Ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa da Amazônia).
"Esse é o tipo de situação que pode acelerar um processo de degradação da floresta que vai ser difícil de recuperar", diz Alencar. "Se essas condições continuarem, vamos antecipar o momento em que a floresta não consegue mais voltar a ser o que era antes."
Caso o desmatamento e a degradação da Amazônia continuem avançando, a região pode atingir um ponto de não retorno, no qual não seria mais capaz de gerar chuva suficiente para manter suas características de floresta úmida. Isso levaria a uma alteração irreversível no bioma, com a possível savanização da região. Estudos estimam que esse processo pode começar quando cerca de 25% da Amazônia tiverem sido destruídos, embora não haja consenso sobre o percentual exato mais crítico.
"Nós estamos realmente muito próximos de um ponto de não retorno da amazônia, principalmente em toda a porção sul", afirma Carlos Nobre, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP.
"Se continuarmos nessa trajetória por mais duas, três décadas, até 2050 a gente passará do ponto de não retorno", diz o climatologista, que foi um dos responsáveis por cunhar o conceito.
Ele destaca que "a estação seca em todo o sul da amazônia, mais de 2 milhões de km², ficou de quatro a cinco semanas mais longa nos últimos 40 anos", além de aproximadamente 20% mais seca. A região é uma das mais desmatadas do bioma.
Marina Hirota, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina, que liderou um estudo sobre o tema publicado na revista Nature em fevereiro, observa que "o ponto de não retorno sistêmico é muito difícil de aferir".
Ela compara a situação a uma falência múltipla de órgãos no corpo humano, em que diferentes partes vão deixando de funcionar, uma de cada vez, até que o todo entre em colapso.
"O que temos observado é que existem pontos de não retorno locais. Por exemplo, no sudeste da amazônia, já tem um aumento de temperatura considerável e uma estação seca mais alongada", diz. "Outro lugar que, neste momento, está passando por uma seca muito, muito extrema é o sudoeste, onde nascem os rios que alimentam o rio Solimões".
Nessas e em outras regiões da amazônia, a degradação é outro fator importante. Esse processo de enfraquecimento da floresta é, ao mesmo tempo, derivado da presença do fogo e um facilitador para as chamas se espalharem.
A mata degradada é aquela que perde as suas maiores árvores, seja pelo corte seletivo para uso da madeira, pela proximidade de áreas desmatadas ou pela própria ação do fogo, abrindo clareiras. Isso permite a entrada de mais vento e luz do sol, deixando o ambiente mais quente e menos diverso.
"Quando o fogo entra em uma área na amazônia, você tem a mortalidade de 50% das árvores, porque as espécies não são adaptadas ao fogo", afirma Berenguer, acrescentando que as funções da floresta ficam extremamente prejudicadas.
De acordo com a pesquisadora, uma floresta saudável é capaz de armazenar cerca de 300 toneladas de carbono por hectare, enquanto em áreas degradadas esse valor diminui para uma faixa entre 80 e 120 toneladas. Um estudo publicado na revista Science no ano passado revela que 38% das florestas restantes na Amazônia continental já estão em estado de degradação. Os cientistas também alertam que o aumento da temperatura global, impulsionado por atividades humanas, cria condições favoráveis para a ocorrência crescente de incêndios.
"Esse é um grande desafio porque a gente não teve que lidar com isso antes", diz Erika Berenguer. "O que nós vamos fazer para nos adaptar e evitar que tenhamos muitos 2024, para que 2024 não seja o melhor ano do nosso futuro?"
André Lima, secretário do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática responsável pelas iniciativas de controle do desmatamento, destaca que, além dos efeitos da seca extrema, o governo observa no aumento das queimadas em áreas florestais da Amazônia uma estratégia de apropriação de terras públicas, especialmente em um período em que houve uma redução significativa do desmatamento.
"O fogo está sendo usado como estratégia de desmatamento. Antes, se desmatava [primeiro] e queimava [depois] para eliminar o resíduo que atrapalha, sobretudo, a pecuária", explica.
Lima menciona dois casos, a Floresta Nacional do Jamanxim (PA) e o Parque Estadual Guajará-Mirim (RO), onde já foram identificadas ações de incêndios criminosos em resposta à fiscalização ambiental. Alencar, Berenguer e Hirota afirmam que somente após a temporada de queimadas será possível determinar com certeza se os incêndios florestais estão sendo utilizados como uma estratégia de grilagem, caso essas áreas sejam transformadas em pastagens ou plantações.