Médicos relatam como lidaram com a morte de um parente muito próximo e o impacto da experiência em suas vidas e carreiras

O GLOBO
Médicos relatam como lidaram com a morte de um parente muito próximo e o impacto da experiência em suas vidas e carreiras Reprodução

‘Prometo solenemente cuidar da minha saúde e bem-estar para prestar ao paciente os cuidados da maior qualidade’. A frase é do Juramento de Hipócrates, texto sobre ética que os médicos proferem em ato solene assim que se formam. É uma das mais emblemáticas do documento, a única que fala da atenção que o profissional dever ter consigo mesmo para salvar a vida de outra pessoa.

Escrito no século V a. C, o documento foi revisado e atualizado uma dezena de vezes ao longo do tempo. Mas jamais contemplou uma situação dramática e pessoal, quando o médico tem de lidar com a morte de uma pessoa muito próxima, como um pai, uma mãe, um avô -- momento em que a exatidão da ciência inexoravelmente é subtraída pela emoção.



"Para um médico, cuidar de um ente querido que se vai é um dos maiores desafios, já que mesmo com todo o conhecimento e dedicação, enfrentar a perda é uma dor que transcende a ciência", diz a cardiologista e intensivista Ludhmila Hajjar, que acompanhou de perto os dias que antecederam a morte do avô, seu grande amigo e inspiração na profissão.


No Dia do Médico, três profissionais contam como é a dor de lidar com a morte de um familiar, as reflexões e ensinamentos que a experiência deu às suas carreiras e vidas.


‘Perdi a pessoa que definiu meu destino na medicina’

Ludhmila Hajjar — Foto: Egberto Nogueira / Divulgação

Ludhmila Hajjar, cardiologista e intensivista, neta de Alfredo Abrahão, morto em 8 de janeiro de 1997


"No meu terceiro ano da faculdade de medicina em Brasília, fui surpreendida por um golpe da vida. Minha mãe me avisou logo pela manhã, que meu avô, na ocasião com 65 anos, havia sido diagnosticado com dissecção de aorta ascendente, uma emergência que ocorre quando a camada interna da parede da aorta se rompe. Em 36 horas, ele estava sendo operado em Goiânia, a 60 quilômetros da cidade da minha família, Anápolis. Larguei tudo e fui para lá. A operação não teve intercorrências, estive junto por todo o tempo, inclusive na sala cirúrgica. Durante longas e intermináveis três semanas que se seguiram à operação, vivi 24 horas por dia na UTI ao lado do meu avô. Nesse período de sofrimento, extraí várias lições de vida que para sempre vão fazer parte de minhas atitudes e caráter. Intercalava meu tempo cuidando dele, ainda intubado, e lendo, buscando soluções para tentar salvar sua vida. Estudei o que pude naqueles intermináveis dias para entender sobre sepse, disfunção cardiovascular, renal e respiratória. Mas, infelizmente, ele faleceu.

Esse tempo com ele na UTI, para minha formação pessoal e profissional significaram anos e sem dúvida deixaram marcas que fazem parte da minha essência como especialista em emergências e em terapia intensiva. Faltou agilidade e eficiência no tratamento do meu avô. Meu querido e amado avô foi atendido em uma emergência não-especializada de Anápolis por um clínico inexperiente. O diagnóstico de dissecção de aorta foi dado apenas 14 horas após a entrada na instituição. Lembro como se fosse ontem. As informações perdiam-se em meio a passagens de plantões, e hoje sabemos o quanto a rapidez no diagnóstico e na tomada de decisão é essencial ao paciente crítico, como é o caso da dissecção de aorta, do acidente vascular cerebral, do choque séptico e da síndrome coronária aguda.

Alguns anos depois, pude compreender que a essência da assistência ao paciente crítico exige capacitação humana, recursos estruturais de qualidade, mas também organização e sistemáticas próximos anos da faculdade passaram rápido e meu foco a partir de então foi o paciente crítico. Perdi um amigo, um companheiro e a pessoa que definiu o meu destino na medicina.", diz Ludmilla encerrando seu relato. 


Marianne Pinotti — Foto: Edilson Dantas/ Agência O Globo

Marianne Pinotti, cirurgiã e ginecologista, filha de José Aristodemo Pinotti, morto em 1 de julho de 2009


"Não há como falar na perda de meu pai sem relembrar o pior dia de nossas vidas. Foi em 1995, quando perdemos Mirella, minha irmã, aos 19 anos, tragicamente num acidente. Meu pai nunca se recuperou. Aos depois, de uma hora para outra, ele começou a ter uma tosse constante, mas não prestava muito atenção nisso. Dedicava a vida ao trabalho, fazia isso pela família. No dia 28 de julho de 2008, um raio X mostrou o tumor no pulmão. Eu estava com ele. Me senti mal, quase desmaiei, queria fugir, sumir, e confesso que o fiz diversas vezes nos dias que se passaram. Ele só me disse: não fale nada para sua mãe, vamos aguardar o diagnóstico. Generosamente poupando seu grande amor. E as notícias chegaram ruins, já com doença disseminada, grave. Para mim e para ele, ambos médicos, tivemos nossa esperança subtraída. A ignorância certas vezes pode ser uma benção, mas ele sabia. E disse: 'não vou durar um ano'.

No dia seguinte, ele se reuniu com seus grandes amigos, o Teixeirinha (professor Luiz Carlos Teixeira) e o Zeca (professor José Carlos Pareja) e decidiram pelo maior especialista em pulmão, o Antônio Carlos Buzaid. Talvez a única alegria que tive nesse processo doloroso foi ter conhecido este grande médico e homem, a quem sou eternamente grata. Meu pai foi guerreiro, nos animou, enfrentou, acreditou na ciência, e só nela. Fez tudo o que foi indicado, nunca reclamou.


Trabalhou o quanto pode nesse período. Mas a doença foi vencendo e aquele gigante ficou frágil, passou a precisar de ajuda, além de Suely, minha mãe, com sua sempre e suave presença, que o deixou nem por um instante. Meu irmão e esposa, eu e Marcelo, meu marido e ainda teve o Tuca, Ramiro, Fernando entre tantos que foram seus anjos.


Me mudei para a casa deles com minhas filhas, então com 11 e 8 anos, meninas guerreiras que faziam os dias duros mais alegres. Quando não conseguia mais sair, ele seguia trabalhado em casa, organizando seu livro (Saúde no Brasil - Provocações e Reflexões), e escrevendo poesia. Me mandava sempre ir trabalhar, se empolgava em ouvir sobre meu dia no Hospital Pérola Byington, que ele adorava, ou saber das pacientes que vi na clínica.


Os sofrimentos foram aumentando, o medo, as internações. Uma madrugada ouvi um movimento diferente, me levantei e fui até o quarto deles, minha mãe estava em pé, acariciando seu rosto e contando uma história de quando eram jovens. Depois ela me disse que ele havia acordado agitado e angustiado e que ela com sua enorme sabedoria e amor o distraia com lembranças dessa linda história de amor. A partir desse momento entendi que a vida assim não tinha sentido, poucos dias se passaram até que na madrugada do dia 1o de julho de 2009 ele se foi, um dia antes do 14o aniversário da morte da Mirella. Sigo tendo a certeza desejada de que ele foi encontrá-la."


Ben-Hur Ferraz Neto — Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo

Ben-Hur Ferraz Neto, cirurgião, filho de José Ben-Hur de Escobar Ferraz Júnior, morto em 25 de maio de 2022

“ 'Médico tem que ser frio', 'Médico não pode sentir nada quando um paciente morre', frases habituais sobre a postura do médico frente a morte. Eu, como médico que lido na maioria das vezes com doenças muito graves e, em decorrência, com a morte muito de perto, posso garantir que isso não é verdade!

Somos seres humanos como todos os outros, com problemas, com angústias, com medos e fragilidades, sempre acuados pela chance da morte estar por perto. Não apenas a nossa, mas dos nossos pacientes e dos nossos familiares. O médico apenas a prende a lidar com ela de uma forma mais racional ou natural, afinal de contas a morte faz parte da vida.


Recentemente, passei pela perda do meu pai, meu melhor amigo e assim chegou a minha vez de ouvir algo semelhante. Vivenciei a rápida deterioração clínica do meu próprio pai. Não como médico e sim como filho, lutei pela sua sobrevivência digna, mantendo-o confortável por quanto tempo a vida permitisse. Tive a sorte grande de contar com médicos que não aderem àquela medicina que tem dificuldade de encarar a terminalidade da vida e facilidade em prolongar a quantidade de vida sem qualidade e até com mais sofrimento, apenas a vida pelo que ela parece ser e não pelo que ela é.


Meus familiares nesta hora, enxergaram a necessidade de preservar o que o homem tem de mais importante: a sua dignidade até neste momento de profunda tristeza. Não fomos egoístas. Fomos capazes de, por amor, reconhecer que o fim estava próximo e que medidas de manutenção da 'vida' com tubos, sondas, medicamentos, não seria justa e muito menos adequada a alguém que amamos. Ele se foi, tranquilo e em paz!

Então, por que falar sobre isso? Para que as pessoas reflitam sobre a manutenção da vida a qualquer custo. Confesso que o médico não se adapta à morte, como muitos pensam. A perda de um paciente é uma enorme frustração, sempre. Não há como ser insensível a isso. Mas, se não houver um entendimento familiar e médico, conjunto, de que a terminalidade da vida existe e deve ser encarada, faremos pessoas queridas sofrerem, desnecessariamente.


Quem decide sobre a morte não é nenhum de nós, mas sobre a manutenção do sofrimento, pode ser que a morte nos traga paz e recordações do privilégio do convívio. Ela é a única certeza da vida! Torçamos para que ela aconteça na hora certa para cada um de nós. Nem cedo, nem após a sua hora.", diz o cirurgião. 








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