Setor agro financia lobby pra patrulhar e influenciar livros didáticos
Christian Lohbauer, vice-presidente da associação De Olho No Material Escolar, questionou durante um evento do Lide, grupo fundado pelo ex-governador de São Paulo, João Doria, em outubro: "O que as crianças e os adolescentes estão aprendendo que será benéfico para o mundo do trabalho?"
"Ela não pode aprender, todos os dias, em todos os materiais, há 30 anos, que tem trabalho escravo na cana-de-açúcar. Ela não pode aprender que o alimento brasileiro está envenenado com agrotóxicos. Ela não pode aprender que a pecuária é responsável pela destruição da Amazônia, porque não é verdade", o próprio Lohbauer respondeu.
Cientista político e um dos fundadores do Partido Novo, ele comanda uma organização que se diz composta por pais e mães sem filiação partidária, preocupados com a educação de seus filhos. Contudo, na realidade, é um movimento apoiado financeiramente por empresas do agronegócio, com o intuito de modificar os materiais didáticos para apresentar o setor de maneira mais favorável.
Com apenas três anos de atuação, a De Olho No Material Escolar (Donme) já conta com associados em 17 estados e 129 cidades, expandindo sua influência em instituições públicas. A organização firmou parcerias com a USP (Universidade de São Paulo), tem acesso facilitado nas secretarias de Educação e Agricultura do estado e mantém diálogos com líderes do Congresso em Brasília, buscando impactar o novo Plano Nacional de Educação (PNE), que definirá as diretrizes educacionais para a próxima década.
Embora a Donme declare ter 70 empresas como membros, não revela suas identidades. Um estudo inédito realizado por pesquisadoras da Faculdade de Educação da USP e da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) indica que entre os associados estão grandes entidades, como a Abag (Associação Brasileira do Agronegócio), que representa empresas como JBS, Cargill, Itaú BBA e Cosan.
Além disso, a associação é financiada pela Croplife Brasil, que representa algumas das principais fabricantes de agrotóxicos, e que foi presidida por Christian Lohbauer até 2023, quando ele assumiu o cargo de vice-presidente da Donme.
"Somos uma entidade que busca a atualização do material escolar com base em conteúdo científico", afirma a Donme em seu site.
Com esse intuito, a Donme, em colaboração com a USP, lançou a "Agroteca", uma biblioteca virtual dedicada ao agronegócio. Nesse espaço, é possível acessar conteúdos que contestam a afirmação de que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, um tema recorrente abordado pela entidade.
No entanto, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, o Brasil se destaca como o principal consumidor de pesticidas entre os dez países com as maiores áreas de cultivo, com uma média superior a 12 kg aplicados por hectare. Em seguida estão a Indonésia (6,5 kg/ha), a Argentina (5,9 kg/ha) e os EUA (3 kg/ha).
Negar a responsabilidade da pecuária pelo desmatamento na Amazônia e a existência de trabalho escravo na produção de cana-de-açúcar também faz parte dessa estratégia — apesar de vários estudos indicarem que a criação de gado é um fator significativo na destruição do bioma, e a cana ser um dos setores que mais empregam mão de obra escrava.
Especialistas em educação pública consultados pela Repórter Brasil classificam a organização como uma versão modernizada do "Escola Sem Partido", que monitorava o material didático e promovia perseguições a professores para evitar uma suposta "doutrinação ideológica" nas escolas.
Segundo Rodrigo Lamosa, professor da pós-graduação em Educação da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), o posicionamento da organização é, muitas vezes, "absolutamente ideológico e nada científico".
"Os livros didáticos são produzidos por autores diversos, são avaliados no interior das editoras e depois no Programa Nacional do Livro Didático, que é um dos maiores programas de distribuição de livros públicos e gratuitos do mundo", afirma Lamosa. "Por mais que a gente possa ter divergências e críticas a alguns livros, isso é parte do processo que constitui a diversidade do campo educacional."
Lobby mira Plano Nacional de Educação
Originalmente chamada de "Mães do Agro", a Donme foi criada em 2021 pela pecuarista Letícia Jacintho, que atualmente ocupa a presidência da associação.
Ela pertence a uma família influente no agronegócio, com empresas e fazendas em São Paulo e Goiás, atuando nos setores de pecuária, cana-de-açúcar e soja. Letícia é reconhecida como uma das mulheres mais poderosas do agro pela revista Forbes.
Entre suas atividades, a entidade promove palestras, treinamentos e análises de materiais escolares. Também organiza reuniões com editoras de livros didáticos e excursões a feiras do agronegócio para alunos, professores e profissionais das editoras. Além disso, realiza lobby em Brasília.
Somente neste ano, a organização já se encontrou pelo menos duas vezes com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), para discutir o Plano Nacional de Educação (PNE), que está previsto para ser votado em 2025.
O documento de referência do plano foi criticado pela De Olho No Material, que argumenta que a proposta é pouco plural, carece de "base técnico-científica na abordagem do conteúdo" e demonstra uma "postura refratária à iniciativa privada".
Essas críticas foram expressas em uma nota assinada em conjunto com outras associações do agronegócio, como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB).
Desde então, a Donme tem realizado diversas ações em Brasília. Além dos encontros com Pacheco e Lira, a organização também se reuniu com o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), presidente da Comissão de Educação da Câmara.
Em março, durante uma reunião da Frente Parlamentar Agropecuária, o deputado apresentou um estudo da Donme e se comprometeu a pautar o tema na comissão, afirmando que "o agro é que sustenta e é a locomotiva deste país".
Financiado pela Croplife, o estudo revelou que a maioria das menções ao agronegócio em 94 livros didáticos tinha um tom negativo. Um exemplo citado é um poema de 1991 de Ferreira Gullar, que aborda as condições precárias dos trabalhadores da cana-de-açúcar.
Em abril, durante uma sessão temática do Senado para discutir o PNE, a Donme sugeriu diversos nomes para fazer discursos. A sessão foi solicitada pela senadora Damares Alvares (Republicanos-DF) a pedido da associação, conforme apurado pela Repórter Brasil.
Segundo Daniel Cara, professor da USP e membro da CNDE (Campanha Nacional pelo Direito à Educação), um dos objetivos do movimento é impor uma visão única sobre a educação, buscando uma "disputa pela hegemonia das ideias na sociedade e pela formação da opinião pública".
Procurada, a De Olho No Material Escolar afirmou que trabalha para melhorar a qualidade do conteúdo didático sobre o agronegócio nas escolas. "Nosso principal objetivo é garantir que a ciência esteja presente nos livros didáticos, com dados e informações técnicas e reais, por isso mantemos parcerias com institutos de pesquisa e instituições de ensino especializadas no setor." Leia a resposta completa.
Em São Paulo, o ex-secretário de Educação Rossieli Soares, durante o governo Doria, declarou que o estado foi o primeiro a adaptar seus materiais em colaboração com a Donme. A atual gestão da secretaria não respondeu quando questionada.
A Secretaria de Agricultura do estado também recebeu a Donme este ano. "Precisamos promover conteúdos com embasamento científico e vivência real para os jovens", afirmou o secretário Guilherme Piai, que também vem de uma família de produtores rurais.
Para Lamosa, a Donme tenta disseminar a ideia de que os livros didáticos estão desconsiderando o agronegócio, mas isso é uma "falácia". "As pesquisas mostram que o agronegócio está presente. A questão é que eles buscam o monopólio na educação."