Conexões entre criminalidade armada, política, polícia e bicheiros vieram à tona

O GLOBO
Conexões entre criminalidade armada, política, polícia e bicheiros vieram à tona Reprodução

A condenação de Ronnie Lessa, assassino confesso da vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes, além de abrir caminho para a punição dos mandantes e a elucidação completa do crime — o de maior repercussão da história recente do país —, também tem uma importância simbólica. Até o caso Marielle, o ex-PM, apontado pela Polícia Federal e pelo MPRJ como um dos mais temidos matadores de aluguel do Rio, responsável por dezenas de assassinatos nas duas últimas décadas e ligado a chefes do jogo do bicho, milicianos e políticos, jamais havia sido condenado por um homicídio sequer.


Até ontem, Lessa era um pistoleiro ficha limpa, um retrato de como o Estado brasileiro falha no esclarecimento de homicídios e na punição aos assassinos. No Rio, regra é a impunidade: só um a cada cinco homicídios é elucidado pela polícia, segundo um estudo do Instituto Sou da Paz; já outro levantamento, do MPRJ, mostra que só 3,5% dos casos são sentenciados. Além de não punir homicidas, o Estado também os treina e os municia. Os assassinos são oriundos dos quadros da PM do Rio e usaram munição desviada da PF.


Até chegar à sentença, os quase sete anos de investigação — com suas idas e vindas, obstruções, omissões e falhas — escancaram as conexões entre a criminalidade armada, a política e o comando da polícia. Após a entrada da PF no caso, Lessa decidiu contar o que sabia e apontou, como mandantes, dois integrantes de um dos clãs mais influentes da política fluminense: o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Domingos Brazão e o deputado federal Chiquinho Brazão. Os tentáculos de ambos se espalham, até hoje, pela máquina do estado e do município, a partir de alianças e relações de compadrio.


Lessa, em seu depoimento-bomba, ainda revelou que o responsável por garantir a impunidade do crime era justamente o responsável por investigá-lo: Rivaldo Barbosa, chefe da Polícia Civil na época do homicídio. Segundo Lessa, o delegado estava acertado com os mandantes antes do assassinato e, inclusive, deu diretrizes para garantir o sucesso da empreitada — ele teria determinado, por exemplo, que os executores não poderiam monitorar a vítima na Câmara dos Vereadores.


A partir do relato, a PF puxou o fio de casos em aberto deixados por Barbosa ao longo dos seis anos em que esteve à frente da Delegacia de Homicídios (DH) e descobriu uma série de indícios de sabotagem em investigações sobre homicídios em meio a disputas entre bicheiros — justamente os crimes em que pairam suspeitas de envolvimento de pistoleiros notórios, como Lessa e o ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega. Inquéritos, como os que apuram os homicídios do bicheiro José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal, e do ex-presidente da Portela Marcos Falcon, passaram anos em gavetas de delegados e promotores, mesmo com provas abundantes sobre a autoria dos crimes. Até hoje, os casos seguem em aberto. Já Barbosa e os irmãos Brazão serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal.


A participação de capos do jogo do bicho na indústria da morte carioca também veio à tona graças ao caso Marielle. Em meio à investigação do homicídio, enquanto ainda não havia provas sobre seus autores, o MPRJ se viu obrigado a se voltar para a atuação de bicheiros, como Rogério Andrade e Bernardo Bello, e seus sicários — que passaram mais de duas décadas disputando espaço pela cidade sem serem importunados. Foi o dinheiro do jogo ilegal que possibilitou a arregimentação, o treinamento e o financiamento de grupos especializados em matar, como o Escritório do Crime. À reboque do homicídio da vereadora, surgiram investigações que terminaram em mandados de prisões para os capos do bicho e dezenas de policiais associados. Após a morte de Marielle, conseguimos enxergar com mais clareza a engrenagem do crime no Rio.




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