‘Mataram Marielle’: da descoberta de testemunhas à condenação de Lessa e Queiroz; 2.423 dias de investigação

O GLOBO
‘Mataram Marielle’: da descoberta de testemunhas à condenação de Lessa e Queiroz; 2.423 dias de investigação A jornalista Vera Araújo — Foto: Guito Moreto /Reprodução

‘Estava na minha primeira semana de folga, em uma praia do Nordeste, no dia 14 de março de 2018, quando, por volta das 21h30, meu celular tocou. Era um dos meus editores do GLOBO, Carlos Monteiro, pedindo que eu tentasse descobrir detalhes sobre um atentado a um parlamentar no Estácio. Até então, não se sabia se era homem ou mulher, branco ou negro, vereador ou deputado. Larguei tudo o que estava fazendo e liguei para algumas fontes, enviando uma dezena de mensagens no WhatsApp, até que veio a notícia: “mataram a vereadora Marielle Franco”.

Fiquei paralisada. Conhecia Marielle desde a época da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias, presidida pelo então deputado estadual Marcelo Freixo, na época filiado ao PSOL. Marielle trabalhava como assessora do parlamentar, sendo responsável por ouvir as vítimas dos milicianos, e chegamos a conversar algumas vezes sobre o crescimento dessa organização criminosa. O GLOBO foi o primeiro jornal a usar o termo “milícia” para definir essa nova facção que crescia no Rio, formada por policiais militares, civis e penais que extorquiam a população.


Minha folga acabou ali. O assassinato de Marielle representava um ataque à democracia. No dia 20 de março, uma terça-feira, decidi ir ao gabinete de Marielle na Câmara dos Vereadores, na Cinelândia. Uma semana após a barbárie contra a parlamentar e seu motorista Anderson Gomes, além da tentativa de homicídio da assessora dela, Fernanda Chaves, a sala de Marielle continuava interditada. Consegui entrar, mas a atmosfera era pesada. Não havia mais o cheiro de incenso de jasmim que Marielle costumava acender, e as flores em sua mesa estavam murchas.


Haveria um ato ecumênico em homenagem às vítimas na Cinelândia, pelos sete dias de sua morte. Não quis ficar. Olhei o relógio e vi que estava perto do horário em que Marielle, Anderson e Fernanda foram atacados. Peguei o metrô para o Estácio. Sozinha, analisei o local da emboscada: a esquina da Rua Joaquim Palhares com a Avenida João Paulo I. Sentada na escadaria de uma agência de automóveis em frente ao local, observei: pouca iluminação, uma câmera da prefeitura quebrada. Quase ninguém passava por ali, exceto quem saía da estação de metrô. E, em dia de jogo do Flamengo, como no dia do crime, ainda menos gente circulava.


Saí em busca de testemunhas e imagens de câmeras. Fui a um posto de gasolina nas proximidades, e o frentista me disse que não ouviu barulho de tiros. Como não ouviu, se estava a poucos metros da cena do crime? Deduzindo que o assassino usou silenciador, continuei as entrevistas. Falei com dezenas de pessoas até encontrar uma testemunha em situação de rua: Natan Netuno. Cito o nome dele pela primeira vez porque ele foi mencionado ontem durante o julgamento de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, condenados pela execução.


Natan, um homem negro e com barba por fazer, tentou negar que estivesse no local da execução, mas se traiu quando perguntei se o assassinato aconteceu às 21h15. Ele me corrigiu: 21h14. Então, estava presente na cena do crime. Ele, que estava a cerca de 15 metros da ação, contou que viu o braço de um homem que “tinha a grossura da minha coxa”. Natan sentiu-se confiante, levantou-se da calçada e mostrou as marcas de frenagem no meio-fio.


— Foi tudo muito rápido. O carro dela (Marielle) quase subiu na calçada. O veículo do assassino imprensou o carro branco. O homem que deu os tiros estava no banco de trás e era negro. Eu vi o braço dele quando apontou a arma, que parecia ter silenciador — disse, gesticulando bastante.


Perguntei a direção que o carro dos assassinos tomou. Ele respondeu prontamente:


— Seguiu pela Avenida Brasil.


Perguntei se havia outras pessoas por perto no momento do crime. Ele respondeu que sim, mencionando uma senhora com uma criança de colo e outra criança pequena pela mão, que atravessava a rua durante o atentado. E comentou:


— Isso é coisa de gente graúda.


Durante dois dias, bati em vários cortiços da redondeza até encontrar uma pessoa que conhecia a testemunha. Natan havia me dado uma descrição física. Deixei meu número e garanti que não comprometeria a testemunha. No dia seguinte, ela me ligou. Dei garantias de anonimato, e marcamos um encontro. Ela foi com os filhos. Era, de fato, a mesma mulher. Não era uma senhora, mas uma jovem mãe de três filhos. Contou que se assustou com os tiros abafados, viu os criminosos fugirem e confirmou a direção mencionada por Natan. Foi ela quem ajudou Fernanda Chaves e chamou uma patrulha da Polícia Militar próxima, avisando sobre o atentado.


No final, sempre com a intenção de ajudar, a testemunha esperou para dar informações à Polícia Civil, mas foi dispensada por policiais militares, que disseram: “Vá para casa cuidar dos seus filhos!” Ela não só foi ignorada pela polícia como também levou uma bronca do marido, que lhe disse que não deveria se meter a ajudar ninguém.


No dia 1º de abril, escrevi a matéria sobre as duas testemunhas que a polícia não encontrou. O GLOBO foi quem as localizou e avisou sobre sua importância à Polícia Civil e à Delegacia de Homicídios da Capital (DHC). Falei diretamente com o então chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, que assumiu o cargo um dia antes dos assassinatos, durante a intervenção federal, indicado pelo general Richard Fernandez. O interventor era o general Braga Netto.


Rivaldo não quis me ouvir. Aos gritos, disse que eu estava mentindo. Aquilo doeu porque sou repórter investigativa, estava imersa no caso. Já conversava com as famílias de Marielle e Anderson e havia me comprometido a tentar ajudar na elucidação do crime como profissional da imprensa, buscando a verdade.


Após muita insistência com o assessor de imprensa e com a matéria já publicada, o comissário Marco Antônio de Barros Pinto, o Marquinho da DH, me ligou pedindo informações sobre as testemunhas. Informei que estavam na área, sendo uma pessoa em situação de rua. A DH levou quase um mês para encontrar Natan, que foi levado à delegacia e filmado. Era a única testemunha com imagens no processo. Nunca mais o vi, apesar de ter voltado ao local algumas vezes.


A outra testemunha participou da reconstituição feita pela DHC. Em seu depoimento, Fernanda Chaves menciona uma mãe com bebê que lhe ofereceu ajuda — justamente a mulher que encontrei e de quem a polícia não queria saber.


Depois da reportagem, continuei em busca de mais informações sobre o crime. Em abril, uma fonte me disse que o carro dos assassinos poderia ter vindo da região de Jacarepaguá, próximo à favela de Rio das Pedras e à Gardênia Azul. Fui a sete postos de gasolina da área até que, no último deles, um frentista começou a me filmar junto com o carro do jornal. Era o último local onde eu procurava câmeras para tentar identificar o veículo dos assassinos. A imprensa, àquela altura, já conhecia a placa do Cobalt prata usado na emboscada. O carro de reportagem foi seguido. Naquela mesma noite, ao sair da redação, meu carro também foi seguido. A intenção, a meu ver, era que recuássemos na investigação.


Desde então, as reportagens prosseguiram com mais vigor: publicamos a possibilidade de que a atividade do mandato de Marielle, na área de Vargem Grande e Pequena, além de Rio das Pedras, tenha incomodado milicianos envolvidos na grilagem de terras, e revelamos a existência do Escritório do Crime, comandado pelo ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) Adriano da Nóbrega, assassinado em fevereiro de 2020 na Bahia.


Ontem, ao ouvir a condenação dos réus confessos Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz e abraçar a mãe e a viúva de Marielle, Marinete Silva e Monica Benício, e a mulher de Anderson, Ágatha, senti um pouco de alívio após seis anos e sete meses do crime. É apenas a primeira etapa. Ainda faltam os mandantes, mas percebo que o trabalho como jornalista investigativa não foi em vão”.





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