Café com o título de 'Melhor do Brasil' vem de fazenda autuada por trabalho infantil


Café com o título de 'Melhor do Brasil' vem de fazenda autuada por trabalho infantil Reprodução

Um lote de café da Bioma Café, produtora do Cerrado Mineiro, alcançou a pontuação máxima na etapa brasileira da Cup of Excellence, uma premiação internacional considerada o “Oscar” do setor. Os vencedores foram anunciados no último sábado (2). Em julho de 2022, uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) revelou que três adolescentes estavam colhendo café na Fazenda Olhos D’Água, de propriedade de Marcelo Assis Nogueira, um dos administradores da Bioma Café.


O trabalho exposto a condições climáticas adversas e que envolve o manuseio de cargas pesadas – como as sacas de café, que pesam 60 quilos – é classificado na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil e é proibido para jovens de 16 a 18 anos. Nogueira é quem aparece recebendo o prêmio nas fotos divulgadas pela Bioma Café no Facebook. A Fazenda Olhos D’Água foi adquirida por ele em 2016 e, conforme documentos cartoriais consultados pela Repórter Brasil, passou a se chamar Fazenda M&F Coffee. É dessa propriedade que se originou o lote premiado.


Além da autuação por trabalho infantil, Nogueira também foi multado por outras 11 infrações à legislação trabalhista. De acordo com o relatório de fiscalização elaborado por auditores fiscais, as condições de trabalho na Fazenda Olhos D’Água “feriam a dignidade da pessoa humana”.


O produtor e a Bioma Café, por meio de sua advogada, afirmaram que a fiscalização se concentrou nas atividades do produtor e que a empresa não tem relação com os incidentes. A defesa destacou que a maioria das infrações se referia a questões de medicina e segurança do trabalho e que, após a fiscalização, medidas corretivas foram adotadas, “o empregador redobrou a atenção para o cumprimento rigoroso das normas trabalhistas, tanto nas atividades individuais quanto em quaisquer parcerias empresariais”. 


O cafeicultor também contesta as autuações relacionadas à contratação de safristas sem registro e à presença de três trabalhadores menores de 18 anos na colheita. De acordo com ele, as informações coletadas pelos auditores fiscais foram baseadas em depoimentos e “nenhum trabalhador relacionado a essas alegações foi efetivamente ouvido ou visto em atividade pelos fiscais”. 


A Cup of Excellence é a principal premiação do setor cafeeiro mundial. A avaliação da qualidade sensorial dos lotes é realizada por juízes especializados em degustações às cegas. O café da Bioma obteve 93,14 pontos em uma escala que vai até 100, sendo a maior pontuação entre as quatro categorias da competição.


O lote da Bioma Café, juntamente com os 17 melhores colocados na Cup of Excellence, será leiloado no dia 10 de dezembro. No ano passado, a saca do café vencedor foi vendida por R$ 84,5 mil, o maior valor já pago por um café brasileiro na história. Os organizadores esperam que esse montante seja superado no leilão deste ano.


“É uma vergonha para o setor ter cafeicultores que foram flagrados com trabalho infantil, informal e precarizado sendo premiados”, opina Jorge Ferreira dos Santos Filho, coordenador da Adere/MG (Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais). “Isso mostra o tamanho do desafio, tanto dos movimentos de trabalhadores quanto do Estado brasileiro e o setor produtivo, para garantir um café produzido de forma sustentável também do ponto de vista social”, avalia Santos Filho. 


Em resposta à Repórter Brasil, Erwin Mierisch, diretor executivo da Cup of Excellence, informou que a organização possui um processo de pré-avaliação de conformidade socioambiental com “diretrizes rigorosas, incluindo padrões ambientais e sociais”, que variam conforme as legislações dos países onde operam. Mierisch também afirmou que enviará os questionamentos sobre as irregularidades identificadas à organização parceira do prêmio no Brasil.


Informalidade e almoço no chão

A Adere/MG foi a instituição que recebeu a denúncia de violações trabalhistas nas áreas de plantio da Bioma Café e a encaminhou ao MTE. Segundo a organização, os trabalhadores foram prometidos boas condições de trabalho, alimentação e alojamento na propriedade. No entanto, ao chegarem em Campos Altos, tiveram que procurar, por conta própria, casas para alugar na cidade.


“Por não chegarem a um acordo de melhores condições de trabalho e de salário, o grupo saiu da fazenda e fez a denúncia para gente”, afirma Jorge dos Santos Filho.


A denúncia da Adere foi feita em 26 de julho de 2022. Quase um mês depois, em 24 de agosto, iniciou-se a operação de fiscalização na propriedade. Os depoimentos dos trabalhadores, recrutados em Alagoas, foram coletados após o término do contrato de trabalho na fazenda.


De acordo com o relatório da fiscalização, um total de 20 trabalhadores contratados para a colheita na Fazenda Olhos D’Água em 2022 estava atuando sem registro formal na carteira de trabalho. O documento também revela que o grupo realizava as refeições no chão, sob os pés de café, e não tinha acesso a banheiros ou água potável no campo. Além disso, os equipamentos de proteção individual (EPIs), como luvas, botas e óculos, eram comprados pelos próprios trabalhadores, em vez de serem fornecidos gratuitamente, conforme exige a lei.


O cafeicultor recorreu das autuações de 2022. Em abril deste ano, esgotou os recursos apresentados ao MTE e pagou as multas relacionadas às irregularidades trabalhistas.


Além das 12 multas trabalhistas, o cafeicultor também foi autuado, na mesma fiscalização, por submeter 20 trabalhadores a condições análogas à escravidão, incluindo três vítimas menores de 18 anos. Após contestar a decisão dos auditores fiscais em duas instâncias administrativas, Nogueira conseguiu, em fevereiro deste ano, o cancelamento do auto de infração. Se tivesse perdido o segundo recurso, seu nome teria sido incluído na Lista Suja do trabalho escravo.


A inclusão de empregadores em um cadastro público ocorre apenas em casos de autuações por trabalho escravo. Outras violações aos direitos humanos e trabalhistas, como o trabalho infantil, não possuem o mesmo mecanismo de transparência.


“A Lista Suja do trabalho escravo já existe há mais de 20 anos. É muito factível e possível que o Estado brasileiro implemente também uma Lista Suja do trabalho infantil”, avalia Luísa Carvalho Rodrigues, procuradora do Ministério Público do Trabalho. Rodrigues está à frente da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e de Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes do órgão.


“Assim como o Estado brasileiro assumiu um compromisso de erradicar o trabalho escravo, também assumiu o compromisso internacional de erradicar o trabalho infantil até 2025”, ressalta a procuradora, referencindo-se a meta 8.7 da Agenda 2030, que lista 17 objetivos de desenvolvimento sustentáveis a serem atingidos pelos países signatárias, entre eles o Brasil. “Essa prioridade precisa se refletir nos nossos mecanismos e nas nossas políticas públicas. Seria imprescindível existir uma Lista Suja e outros mecanismos eficazes no enfrentamento ao trabalho infantil”, complementa.


Fazenda mantém certificação

A Fazenda Olhos D’Água é certificada pela Rainforest Alliance, o principal selo de boas práticas socioambientais do mundo. A propriedade já possuía essa certificação no momento da fiscalização, e o selo foi renovado em junho deste ano.


Em resposta à reportagem, a certificadora informou que, após a divulgação do caso pela Repórter Brasil, uma nova auditoria foi realizada na propriedade em 17 de outubro de 2022. A entidade responsável pela verificação da conformidade com os padrões da Rainforest Alliance recomendou a manutenção do selo, pois "não foram encontradas evidências de trabalho forçado". Quanto às outras infrações trabalhistas mencionadas pelo MTE, a Rainforest Alliance declarou que "nenhuma não-conformidade com os requisitos da certificação foi revelada pelos processos de auditoria de investigação e certificação".







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