Cerca de 30% dos municípios brasileiros já privatizaram serviços de água e esgoto
Em pouco mais de quatro anos, desde a aprovação do marco regulatório em julho de 2020, a participação da iniciativa privada no setor de saneamento básico aumentou de 6% para quase 30% dos municípios brasileiros. Esse crescimento é significativo, especialmente em um contexto de incertezas sobre as regras de concessão durante o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Segundo um levantamento da Abcon Sindcon, a associação das empresas privadas, 1.648 municípios transferiram os serviços de água e esgoto para companhias privadas, representando 29,6% das cidades do Brasil. Desde a implementação do marco regulatório, foram realizados 54 leilões em 20 estados, totalizando investimentos de R$ 160,6 bilhões.
A atuação do setor privado na gestão de saneamento tem crescido continuamente. Em 2019, apenas 291 municípios contavam com essa gestão sob responsabilidade privada. Em 2023, esse número aumentou para 876. Para o próximo ano, estão previstos mais 23 projetos, com investimentos estimados em R$ 72,4 bilhões.
O último leilão ocorreu em 30 de outubro, quando a Aegea conquistou a concessão para atender todas as cidades do Piauí, exceto a capital Teresina e Landri Sales. A concessão, com duração de 35 anos, prevê um investimento de R$ 8,6 bilhões. O ano também foi marcado pela privatização da Sabesp e por leilões de serviços de água e esgoto em Sergipe.
Os dados da Abcon indicam que o marco regulatório tem se mantido robusto, mesmo diante das incertezas geradas pelo atual governo. Em janeiro do ano passado, uma série de decretos assinados pelo presidente Lula trouxe uma onda de dúvidas sobre a atuação do setor privado, considerado essencial para assegurar os investimentos necessários em saneamento.
Esses decretos visavam oferecer uma sobrevida às companhias estaduais. Parte deles foi rejeitada na Câmara dos Deputados, como a autorização para que empresas públicas estaduais de saneamento prestassem serviços a microrregiões ou regiões metropolitanas (RM) sem licitação. “Apesar disso, a agenda continua avançando bem, com o crescimento da iniciativa privada, e esse ritmo deve se manter, pois há muitos projetos em andamento”, afirma Christianne Dias Ferreira, diretora-executiva da Abcon.
As discussões ressaltaram a importância do marco regulatório para o setor, independentemente do governo em exercício. De acordo com a CEO do Instituto Trata Brasil, o marco deve ser tratado como uma política de Estado, e não apenas de governo.
Em busca das metas
Um dos principais aspectos do marco do saneamento é a exigência de que as empresas do setor demonstrem capacidade econômico-financeira para cumprir as metas estabelecidas, que visam garantir que 99% da população tenha acesso à água tratada e que 90% do esgoto seja coletado até 2033.
O Brasil precisa acelerar os esforços para atingir essas metas. Desde a implementação do marco, os investimentos aumentaram de R$ 80 por habitante para R$ 111 por habitante, mas é necessário que cheguem a R$ 230.
“O Brasil vai atingir a meta? Temos municípios com bons indicadores e que estão evoluindo e temos aqueles com indicadores ruins, mas que estão no caminho, porque já têm um projeto estruturado. E também temos municípios que ainda estão num processo muito inicial de estruturação, de uma modelagem ou sequer estão pensando no tema de saneamento básico”, afirma Luana.
“Nos dois primeiros grupos, temos chance de atingir as metas. Agora, aqueles que estão muito no início ou tem imbróglios para ser resolvidos podem atingir, mas é muito mais difícil”, acrescenta.
Atualmente, 32 milhões de brasileiros ainda não têm acesso à água tratada, e 93 milhões vivem sem coleta de esgoto, conforme dados do Instituto Trata Brasil. Segundo as metas definidas no marco regulatório, até 2033, 99% da população deverá ter acesso à água tratada, e 90% deverá contar com serviços de coleta e tratamento de esgoto. “Não acredito que será possível cumprir as metas de universalização dos serviços de saneamento básico até a data definida. O Trata Brasil estima que, mantendo o ritmo atual, a universalização só será alcançada em 2070, um atraso de 37 anos”, diz o advogado Rodrigo de Pinho Bertoccelli, presidente do Centro de Estudos em Integridade e Desenvolvimento (Ceid).
De acordo com ele, o marco regulatório trouxe mudanças importantes, mas para que as metas sejam alcançadas, é fundamental um maior comprometimento dos prestadores de serviços, bem como dos governos federal, estaduais e municipais. “Para atingir a universalização, é fundamental um maior engajamento e comprometimento de todos os envolvidos. Sem isso, os objetivos estabelecidos continuarão fora de alcance.”
Um dos principais obstáculos ao progresso do saneamento no Brasil é a disputa política entre prefeitos e governadores. Um dos pilares do marco legal é a regionalização, que visa garantir que municípios pequenos e mais carentes também sejam incluídos e beneficiados nos leilões dos serviços transferidos para a iniciativa privada. As disputas entre prefeitos e governos acabam atrapalhando esse processo de universalização”, afirma Luana.
Um segundo pilar que deve ser constantemente fortalecido é o das agências reguladoras infranacionais, essencial para assegurar a segurança jurídica de todo o processo. Existem cerca de 100 dessas agências espalhadas pelo país. De acordo com o desenho do marco, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) é responsável por elaborar as chamadas normas de referência, enquanto cabe às agências locais monitorar o cumprimento dos contratos.
“Como uma miríade de agências infranacionais, há um problema sério de conciliação, harmonização das regras regulatórias”, afirma Gesner Oliveira, economista e sócio da consultoria GO Associados. “É muito importante haver esse papel da ANA, e ela tem feito um trabalho importante emitindo esses textos de norma de referência.”