Governo Lula patina no debate sobre corte de gastos em meio a pressões eleitorais e crise econômica
O cenário político atual, que se apresenta como uma dicotomia entre Lula e Bolsonaro, esquerda e direita, monetaristas e desenvolvimentistas, republicanos e democratas, tornou-se mais complexo na realidade. Em meio à revolução digital, às conexões globais e à crescente intolerância entre diferentes grupos, a formulação de políticas públicas, o avanço nos indicadores econômicos e o reconhecimento por esses esforços nas urnas e nas pesquisas de opinião se tornaram desafiadores.
Adicionando a essa equação cartilhas políticas fundamentadas em um passado analógico, o futuro marcado pela inteligência artificial se torna ainda mais enigmático, especialmente ao tentarmos entender os movimentos eleitorais considerados surpreendentes em várias partes do mundo.
Um exemplo claro desse dilema é o enfrentado recentemente pelo governo, sua base de apoio e o PT. De um lado, há a pressão para realizar um ajuste fiscal que é visto como neoliberal até mesmo por membros do partido do presidente; do outro, a cobrança para não abandonar a "pegada social" que sempre foi um pilar do discurso petista. Lula e seu governo correm o risco de perder o foco para as eleições de 2026.
A situação das contas públicas é alarmante. A maioria dos economistas, incluindo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o futuro presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, concorda que as finanças públicas estão à beira do colapso. Galípolo já alertou sobre o risco de a política monetária perder eficácia em 2026. Assim como em uma família ou empresa, despesas descontroladas representam um problema sério, e a solução com receitas extras tem seus limites, algo que Haddad compreende bem.
Por outro lado, muitos políticos, incluindo a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, argumentam que o ajuste fiscal não pode ser feito à custa das despesas sociais e que é preciso encontrar formas de acomodá-las. Com a dívida pública se aproximando de 80% do PIB, a situação é reconhecida como difícil, mas as posições permanecem inalteradas. Tanto economistas quanto políticos estão focados nas próximas eleições presidenciais, que ocorrerão em dois anos, com ou sem a presença de Lula na disputa.
Nos últimos dias, o debate interno no governo em torno de um pacote de medidas para equilibrar as contas e estabilizar as dívidas se intensificou. O apelo de Haddad, Galípolo e da ministra do Planejamento, Simone Tebet, inicialmente convenceu Lula. Contudo, as tensões aumentaram, levando a reuniões difíceis e ameaças públicas de demissão, como as feitas pelos ministros Carlos Lupi (Previdência) e Luiz Marinho (Trabalho).
O trio Haddad-Galípolo-Tebet sabe que precisa apresentar resultados que convençam o mercado sobre o compromisso do governo com a manutenção de indicadores-chave que promovam crescimento e renda até 2026. Eles defendem a necessidade de uma mudança na estrutura do gasto público no Brasil. Embora Lula parecesse convencido, a pressão política fez com que ele hesitasse. “Se não fizermos agora, podemos comprometer o desempenho econômico em 2026”, admite um integrante do governo. “Mas vamos fazer. A dívida pública terá uma trajetória de estabilidade no longo prazo.”
O presidente Lula ainda nutre ressentimentos em relação ao ajuste fiscal realizado em seu primeiro mandato pelo então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Para ele, a necessidade de "agradar ao mercado" para estabelecer credibilidade acabou prevalecendo, gerando, posteriormente, um conflito político em sua base de apoio, especialmente por desconsiderar as demandas sociais da população.
Enquanto o governo tenta gerenciar esses conflitos, o cenário internacional se agrava, criando um clima de descontentamento entre investidores em relação a países emergentes, incluindo o Brasil. Essas economias, que dependem do fluxo de capital estrangeiro, começam a ser vistas com desconfiança.
No entanto, no cotidiano da população, a realidade é marcada por alguns indicadores positivos: i) a taxa de desemprego está em seu menor nível histórico (6,8%); ii) a economia cresce cerca de 3% ao ano; iii) o Bolsa Família foi ampliado; e iv) programas sociais como o Pé de Meia (que oferece incentivos financeiros a alunos do ensino médio) trazem boas notícias.
Apesar disso, a aprovação do governo Lula é de apenas 36%, conforme pesquisa do Datafolha, um índice semelhante ao que Jair Bolsonaro alcançou no mesmo período de mandato, já durante a pandemia da Covid-19. No segundo ano do governo Lula 2, quando os resultados do forte ajuste fiscal do mandato anterior começaram a ser percebidos, sua aprovação atingiu 64%, segundo o mesmo instituto.
Economistas afirmam que a discrepância entre os dados econômicos positivos e a baixa aprovação do governo pode ser atribuída a uma série de fatores que influenciam a percepção dos entrevistados, como: i) juros elevados; ii) desvalorização da moeda; iii) enchentes e tragédias decorrentes de eventos climáticos; iv) corrupção; v) violência nas ruas, nos transportes e em casa; vi) aumento nos preços dos alimentos; e, por último, um fator menos tangível, mas igualmente importante, vii) um algoritmo que faz com que as pessoas se sintam perdidas em meio a tantas notícias negativas.
Se, em um passado recente, a economia era vista como a única chave para entender as variações de humor dos eleitores — como afirmou James Carville, estrategista da campanha de Bill Clinton em 1992, com a famosa frase "É a economia, estúpido" — hoje é necessário considerar um conjunto mais amplo de fatores. Essa máxima já não explica tudo, e isso se aplica ao Brasil.
“Hoje há um mal-estar, sim, de metade da população, com a outra metade, o que faz com que se alimente um antipetismo”, avalia Sérgio Vale, sócio e economista-chefe da consultoria MB Associados. “O governo ainda tem a imagem manchada pelos escândalos de corrupção do passado recente e paga esse custo”, emenda. Vale observa que essa irritação generalizada é potencializada pela pauta do “identitarismo” (ênfase na identidade de grupos minorizados como raça, gênero, idade, orientação sexual), exacerbada nas redes sociais, opondo governo e oposição. “E o governo não sabe lidar com isso.”
Para um ex-integrante do governo, “a era de ganhar eleição com Bolsa Família acabou”. “De forma geral, os incumbentes que enfrentaram eleições em 2024 perderam”, observa essa mesma fonte, destacando ainda que a combinação da desigualdade de renda com as redes sociais como amplificadora das divisões eleitorais tem falado mais alto nas urnas. “O Brasil tem até dados bons na conjuntura, mas a sensação das pessoas não é igual”, diz, ressaltando que, se não conseguir reverter essa tendência, o governo poderá até aumentar o limite de isenção na tabela do Imposto de Renda e não conseguirá “faturar politicamente”.
Nível de preços e inflação
Um aspecto crucial na análise econômica que contribui para a "sensação de melhora" é o nível de preços. A aposentada Marlene Santos expressa sua frustração ao afirmar: “O governo diz que a inflação está controlada, mas os preços no mercado estão absurdos”, enquanto aguarda para pagar suas compras em um grande supermercado de Brasília. Sua percepção é compartilhada por outras pessoas na fila, cada uma comentando sobre o preço de diferentes produtos.
Embora o nível de preços — que representa o valor médio de bens e serviços em um determinado momento — possa estar estabilizado, ele pode estar em um patamar elevado. Por outro lado, a inflação, que mede a variação desses preços ao longo do tempo, pode ser baixa. Mesmo assim, a insatisfação é evidente entre os consumidores. Além disso, a cotação do dólar também influencia essa percepção.
Roberto Padovani, economista-chefe do banco Votorantim, destaca que a taxa de câmbio é um importante indicador para avaliar a performance dos governos, especialmente após a classe média ter se familiarizado com viagens internacionais na era pós-Plano Real. “A preocupação com o câmbio é crescente. A taxa chegou a quase R$ 6, enquanto no final do ano passado estava em R$ 4,90. Isso cria a impressão de que a situação econômica é ruim”, analisa.
Segundo Padovani, a deterioração do cenário global é um fator determinante. “Há tensões geopolíticas, preocupações com o crescimento da China e os impactos da política de Trump nos Estados Unidos”, explica. “Os mercados estão mais cautelosos e a pressão fiscal aumentou. No final do ano passado, os investidores não se preocuparam tanto com esses fatores devido ao alto fluxo de recursos no mundo. Agora, a situação mudou.” Ele enfatiza que o pacote de ajuste fiscal anunciado para os próximos dias precisará ser eficaz se o governo deseja controlar a economia, melhorar a percepção da população e se preparar para 2026.