Militares sob investigação da PF buscavam envolver promotor e deputado em golpe de Estado
A Polícia Federal revelou que um gabinete de "crise" formado por militares bolsonaristas em 2022 contava com cinco generais e onze coronéis. A missão desse grupo era "pacificar" o país após um golpe de Estado que planejava o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. O plano, denominado "Punhal Verde e Amarelo" pelos conspiradores, incluía estratégias para "influenciar a opinião pública" e "controlar" as comunicações do governo, visando "evitar desinformações que pudessem enganar a população". Além disso, estava previsto a inclusão de um promotor no "gabinete do golpe" e a criação de um braço para monitorar decisões do Congresso Nacional, buscando apoio político para um decreto de ruptura.
Na última quinta-feira, 21, os generais Mário Fernandes, Augusto Heleno e Braga Netto foram indiciados pela tentativa de golpe articulada durante o governo Bolsonaro. A PF atribui a Bolsonaro, a 11 aliados e a 25 militares a prática de crimes como a abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. Em resposta ao indiciamento, a defesa de Braga Netto argumentou “indevida difusão de informações relativas a inquéritos, concedidas ‘em primeira mão’ a determinados veículos de imprensa, em detrimento do devido acesso às partes diretamente envolvidas e interessadas”.
A criação da estrutura do “Gabinete Institucional de Gestão de Crise” foi responsabilidade do general de Brigada reformado Mário Fernandes, que, na época, ocupava o cargo de secretário-executivo da Presidência durante a administração de Jair Bolsonaro.
Trechos da Operação Contragolpe Foto: Polícia Federal
O grupo planejava criar um braço para “monitorar” as decisões do Congresso Nacional, com o objetivo de “buscar o máximo de apoio parlamentar” para um decreto de golpe. A intenção era incluir, em seu núcleo de Assessoria Jurídica, a Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos, a Advocacia Geral da União e até um promotor do Ministério Público Militar, conforme indicado por Fernandes, que foi preso na Operação Contragolpe, deflagrada na terça-feira, 19.
Em entrevista o promotor Nelson Lacava Filho, mencionado na minuta do gabinete de crise, expressou “absoluta perplexidade e constrangimento” pela inclusão de seu nome no documento. “Jamais promovi qualquer ação em detrimento do Estado Democrático de Direito e, muito menos, quanto à vida de qualquer pessoa”, destacou.
A meta do grupo era “estabelecer diretrizes estratégicas, de segurança e administrativas para o gerenciamento da crise institucional”. O gabinete também visava “proporcionar ao presidente da República (Jair Bolsonaro) uma maior consciência situacional das ações em curso, a fim de apoiar o processo de tomada de decisão”.
Entre as diretrizes estratégicas do gabinete de ‘crise’, estavam a criação de vínculos com Ministérios para ações coordenadas e a articulação de apoio parlamentar para aprovar as medidas políticas necessárias e as ações previstas no possível decreto de golpe. O núcleo radical pretendia, ainda, estabelecer uma rede de inteligência para atuar como “gestor de informações, sensor e catalisador de conhecimentos oriundos da coleta de informações das instituições e da população civil”.
De acordo com o inquérito da Operação Contragolpe, os militares estavam prontos para instalar o comitê no dia 16 de dezembro de 2022 – um dia após integrantes das Forças Especiais do Exército, os ‘kids pretos’, implementarem um audacioso plano discutido na casa do então ministro da Defesa, general Braga Netto: a prisão e execução do ministro Moraes.
Trechos da Operação Contragolpe Foto: Polícia Federal
A ação foi abortada de última hora, com os militares já posicionados, devido ao fato de uma votação no Supremo ter terminado mais cedo, frustrando os golpistas. O líder do grupo seria o general Augusto Heleno, que na época chefiava o Gabinete de Segurança Institucional, enquanto Braga Netto ficaria encarregado da coordenação da operação. O general Mário Fernandes assumiria a Assessoria Estratégica, ao lado do coronel Élcio Franco, ex-número 2 do Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro.
O grupo se reuniria na sala de reuniões Suprema, no 2º andar do Palácio do Planalto, operando em um regime de trabalho 24 horas por dia, 7 dias por semana. Com Mário Fernandes, a Polícia Federal apreendeu dois documentos que detalhavam o gabinete de ‘crise’, sendo um deles mais elaborado, com o cabeçalho do GSI e a tarja ‘documento secreto’, que, segundo os investigadores, teria sido impresso no próprio Palácio do Planalto no dia 16 de dezembro.
Havia seis cópias, com 30 páginas cada, que possivelmente seriam distribuídas durante uma reunião da organização. No dia 17, Mário Fernandes, autor da minuta, visitou Bolsonaro no Alvorada.
Um dos documentos encontrados pela PF previa a “minimização das narrativas de mídia”, a identificação de lideranças políticas, jornalistas, prefeitos e governadores favoráveis a ações, além de “medidas de proteção da população civil contra ataques de contrários infiltrados ou não”.
Sob a indicação de ‘outros dados julgados úteis’, citava ainda o ‘Ctto’ – abreviação que pode se referir a contato ou a comando e controle tático operacional – de povos indígenas, ‘agro’, manifestantes, caminhoneiros, e as Polícias Militar e Civis dos Estados.
Outro documento detalhava um comitê composto por onze núcleos, incluindo uma assessoria de Relações Institucionais, liderada pelo ex-assessor de Bolsonaro, Filipe Martins. Havia também uma Assessoria de Operações Psicológicas e uma Assessoria de Comunicação Social, composta por quatro coronéis e dois tenentes-coronéis, entre os quais se destacava a única mulher militar mencionada na minuta.
Para a Assessoria Jurídica, foram previstos dois nomes e duas instituições, incluindo o do promotor do Ministério Público Militar, Nelson Lacava Filho, que atualmente é presidente da Associação Nacional do Ministério Público Militar e colaborador da Comissão da Preservação da Autonomia do Ministério Público. Em declaração ao Estadão, Lacava Filho afirmou que não tinha conhecimento do documento e não autorizou a inclusão de seu nome. “Se tivesse tomado conhecimento de tal empreitada, teria sido o primeiro a informar ao Procurador-Geral da República, pois é a atribuição primordial do Ministério Público defender a ordem jurídica e o regime democrático”, destacou.
Os golpistas também pretendiam incluir a Advocacia-Geral da União e a Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos no grupo. Além disso, o comitê teria funções especiais de ligação com o Ministério da Defesa, o Comando de Operações Terrestres, a Inteligência do governo, a Secretaria de Comunicação, o Superior Tribunal Militar, a AGU e o Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Os documentos relacionados ao ‘gabinete de crise’ pós-golpe são apenas uma parte das descobertas da Operação Contragolpe, que também revelou detalhes dos planos ‘Copa 2022’ (para a execução de Moraes) e ‘Punhal Verde de Amarelo’ (que incluíam o envenenamento de Lula, explosão de Moraes, assassinato de Alckmin e, possivelmente, também do ministro do STF Flávio Dino, que era referido como ‘Juca’ nas mensagens dos radicais).
Nota de Nelson Lacava Filho
É a presente para atestar minha absoluta perplexidade e constrangimento ao ver meu nome inserido na lista do suposto “gabinete de crise”, consoante noticiado pela imprensa. Jamais assenti a qualquer ato desse tipo. Jamais promovi qualquer ação em detrimento do Estado Democrático de Direito e, muito menos, quanto à vida de qualquer pessoa. Sou membro do Ministério Público Brasileiro, cristão, doutor, mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Seria uma conduta diametralmente oposta a minha formação profissional e familiar participar de semelhante empreitada. A menção ao meu nome talvez possa ser explicada em razão de alguma credibilidade no meio militar e contatos com alguns integrantes do governo anterior, tudo em decorrência da minha atuação pretérita enquanto membro do Ministério Público Militar e auxiliar da Comissão de Preservação da Autonomia do Ministério Público, no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Quando dessa minha atuação, tive interlocução com diversos militares e agentes políticos. Por essa razão, não seria difícil algum assessor do Planalto ou ministro de Estado ter acesso a meus contatos. Repito, não tinha conhecimento de tal documento, não assenti para que meu nome estivesse nele e, se tivesse tido conhecimento de tal empreitada naquele momento, ou mesmo posteriormente, teria sido o primeiro a noticiar ao Procurador-Geral da República o referido fato, haja vista que é atribuição primeira do Ministério Público a defesa da ordem jurídica e do regime democrático (art. 127 CF).
Nota do Supremo Tribunal Militar
Em relação às menções envolvendo militares investigados no Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe de Estado no final de 2022, que alegam a existência de um suposto “arcabouço jurídico” em elaboração pelo Superior Tribunal Militar, esta Corte refuta veementemente tais afirmações. O Superior Tribunal Militar reafirma que sua missão constitucional é exclusivamente julgar os crimes militares previstos em lei, conduzidos por meio de ações penais militares e em conformidade com os ritos estabelecidos pelas normas legais. Adicionalmente, não há qualquer registro nesta Corte de visitas dos envolvidos a gabinetes de ministros do STM ou à Presidência do Tribunal. Qualquer alegação ou iniciativa que desvie dos princípios constitucionais ou atribua à Corte funções alheias à sua competência legal incompatível com o papel desta instituição e não é do conhecimento desta Presidência.