Brancos de classe média atacam cotistas porque perderam privilégio de ser medíocres, diz escritor pioneiro das cotas

Folha de São Paulo
Brancos de classe média atacam cotistas porque perderam privilégio de ser medíocres, diz escritor pioneiro das cotas Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura em 2021, foi um dos primeiros estudantes a ingressar por cotas na UFRGS - Divulgação

Pobre, cotistas filho da p*, só podia ser cotista. Essas foram algumas ofensas proferidas por estudantes de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) a alunos da Universidade de São Paulo (USP) durante um jogo universitário de handebol. O episódio, amplamente repercutido, trouxe à tona a persistência do preconceito e a hostilidade enfrentada por cotistas em ambientes acadêmicos.

Menos de um mês antes, Jeferson Tenório lançava seu novo livro, De Onde Eles Vêm (Companhia das Letras). A obra narra a experiência de Joaquim, um jovem negro da periferia de Porto Alegre que entra na universidade pública através do sistema de cotas, enfrentando os desafios de integrar um ambiente branco e elitista. Segundo Tenório, situações como a dos jogos universitários são reflexo de um ressentimento histórico. “Existe uma elite acostumada a ser servida por pessoas pobres e negras. Em 15 anos, esses subalternizados passaram a ser seus colegas. Quando esses dois mundos se encontram, vemos cenas como essas no meio acadêmico”, afirma o autor.

O escritor também aponta o temor da classe média em perder sua posição privilegiada. “Há um sentimento de frustração. Entender que não adianta ter só os meios de produção, que não é mais possível ser mediano ou medíocre e ter as coisas facilitadas, como a classe média sempre teve”.

A Hostilidade do Ambiente Acadêmico

Para Tenório, os desafios enfrentados pelos alunos cotistas vão além das dificuldades financeiras ou acadêmicas. Há um impacto profundo no aspecto psicológico e social. “Esses são espaços historicamente marcados pela exclusão. O aluno cotista enfrenta, primeiro, a luta pela permanência. Depois, uma solidão, vergonha e medo de dizer que é cotista, devido ao discurso que questiona sua capacidade”.

Esses estudantes também podem vivenciar uma ruptura com suas origens, sentindo-se deslocados tanto no ambiente universitário quanto na periferia. “Meu livro explora essa divisão: até que ponto os cotistas precisam ser aceitos e qual o preço disso em um ambiente tão branco, burguês e elitista”.

Embora o sistema de cotas tenha mais de uma década e redes de apoio tenham surgido, o ambiente universitário continua hostil. Episódios de preconceito, como os insultos nos jogos ou o suicídio de um aluno bolsista em um colégio de elite em São Paulo, evidenciam essa realidade.

“A hostilidade é parte da própria natureza da universidade, um ambiente competitivo e frio. Nos jogos universitários, especificamente, vemos um histórico de comportamentos misóginos e preconceituosos. Esses espaços reproduzem uma herança escravagista, com uma elite ressentida em dividir um espaço que antes era exclusivamente seu”, afirma Tenório.

A Importância das Cotas e a Educação da Branquitude

As cotas trouxeram uma transformação significativa para o acesso à educação superior, mas também geraram um embate com a classe média e alta. Para Tenório, essa convivência não beneficia apenas alunos negros e pobres. “As cotas também ajudam na educação da branquitude. Elas provocam uma reflexão sobre privilégios e desigualdades, algo essencial para uma sociedade mais justa”.

Ele cita o filme Que Horas Ela Volta? para ilustrar o desconforto da elite ao ver as desigualdades sendo questionadas. “Quando a filha da empregada passa no vestibular para arquitetura e o filho da patroa não consegue, surge um sentimento de frustração. Isso explicita o medo de perder um espaço que sempre foi desigual”.

Trajetória de Jeferson Tenório

Tenório foi o primeiro aluno negro a concluir uma graduação pela UFRGS como cotista. Ele relata o preconceito enfrentado na época. “Diziam que seria difícil conseguir emprego ou que os cotistas diminuiriam as notas do curso. Nada disso se confirmou. Pelo contrário, minha experiência como cotista foi um diferencial positivo”.

Hoje, como escritor premiado, ele reflete sobre as violências simbólicas do ambiente acadêmico. “Descobri que Machado de Assis era negro só durante o mestrado. Essa invisibilidade também é uma forma de violência. A universidade oferece um tipo de conhecimento como universal, desconsiderando outros saberes”.

A Construção de Um Novo Olhar

Em De Onde Eles Vêm, Tenório busca criar um diálogo entre diferentes perspectivas. Joaquim, o protagonista, questiona os autores brancos e europeus consagrados enquanto se aproxima da literatura negra. “Esse movimento é uma forma de retorno às origens, mesmo reconhecendo que muitas dessas origens são construções imaginadas”.

Tenório também destaca a importância de formas alternativas de letramento, como a música. “Na minha juventude, o rap e o hip hop foram meu primeiro contato com a linguagem e a estética. Precisamos reconhecer essas outras formas de leitura e valorizar o que dialoga com a realidade da juventude brasileira”.

Com sua obra e experiência, Tenório segue contribuindo para um debate essencial: como construir uma sociedade em que o direito à educação seja pleno e verdadeiramente inclusivo.




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