Setor de agrotóxicos se beneficia com isenção e acumula R$ 21 bilhões em impostos não pagos
Durante as discussões sobre cortes orçamentários, a Receita Federal publicou na semana passada a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (Dirbi), que apresenta as empresas que receberam isenções fiscais de janeiro a agosto de 2024, junto com os valores detalhados.
No total, a União concedeu mais de R$ 97 bilhões em isenções fiscais a cerca de 50 mil empresas de diversos setores. Entre os mais favorecidos, o setor de adubos e fertilizantes recebeu R$ 14,95 bilhões em renúncias fiscais, enquanto os agrotóxicos deixaram de pagar mais de R$ 10 bilhões em impostos. A cadeia da soja, por sua vez, acumulou R$ 2,9 bilhões em tributos não pagos.
“A publicação destes dados não só corrobora, como ultrapassa as estimativas anteriores, e prova de forma cabal que o Brasil carrega o agronegócio nas costas. Imaginem apenas metade deste dinheiro sendo investido em medidas de reparação às vítimas, redução de agrotóxicos e produção agroecológica? É por isso que precisamos brigar”, disse Alan Tygel, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
Jaqueline Andrade, assessora jurídica da organização não-governamental Terra de Direitos, afirma que essa é uma política estatal que pesa sobre o erário público, caracterizando um “deslocamento de recursos públicos para setores privados de maneira obscura e implícita”.
“Os valores apresentados pelo Ministério da Fazenda em isenções fiscais são exorbitantes. Soma-se bilhões de reais em isenções fiscais de agrotóxicos de grandes empresas transnacionais como a Syngenta, Yara fertilizantes, BASF, Bayer. Enquanto isso, segundo o último relatório da Organização das Nações Unidas, divulgado em julho deste ano, 8,4 milhões de brasileiros passaram fome no Brasil entre 2021 e 2023 ou 3,9% da população”, considera.
Andrade ressalta que, além da perda fiscal, os danos causados pelo uso indiscriminado de agentes químicos na agricultura são suportados por toda a sociedade.
“Só entre 2010 e 2019, o Ministério da Saúde registrou a intoxicação de 56.870 pessoas por agrotóxicos no país. Estima-se que o custo para o Sistema Único de Saúde para cada caso de intoxicação é de 150 reais. De outro modo, para cada 1 dólar gasto com compra de agrotóxicos, o SUS é onerado em 1,28 dólar dependendo do tipo de tratamento para intoxicação aplicado”, avalia a assessora da Terra de Direitos.
As maiores renúncias fiscais são concedidas a empresas do agronegócio, com destaque para as fornecedoras de fertilizantes e defensivos químicos, a maioria delas com capital internacional.
Um exemplo é a chinesa Syngenta, que deixou de pagar cerca de R$ 1,77 bilhão em impostos, seguida pela norueguesa Yara Fertilizantes, que obteve aproximadamente R$ 1,23 bilhão em isenções. A OCP, de capital marroquino, recebeu R$ 975,9 milhões em renúncia fiscal, enquanto a alemã Basf teve R$ 907,6 milhões. Outra empresa notória nesse setor, a Bayer, ganhou R$ 677 milhões em isenções.
Na liderança dos benefícios, com R$ 2,27 bilhões em impostos não pagos, está a Braskem, uma indústria química responsável pelo afundamento de bairros inteiros em Maceió, Alagoas, uma das maiores tragédias socioambientais do país. A Braskem afirmou que o valor declarado estava incorreto e já foi retificado, alegando que a quantia exata do incentivo seria de R$ 175 milhões, referente ao período de janeiro a agosto de 2024.
João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, utilizou sua conta na rede social X para criticar esses valores e argumentar que as isenções fiscais para agrotóxicos devem ser incluídas na discussão sobre os cortes de gastos que a equipe econômica do governo está realizando. “Nos 11 meses deste ano, fertilizantes químicos receberam R$ 14,95 bilhões, agrotóxicos R$ 10,79 bilhões e exportação de soja R$ 2,95 bilhões, totalizando R$ 28,69 bilhões. Não era essa a conta dos cortes de gastos? Por que não eliminam esses privilégios das empresas?”, questionou o aliado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
STF discute isenção para gigantes dos agrotóxicos
A política de isenções fiscais para agrotóxicos está sendo contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5553, movida pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol).
A ação, sob a relatoria do ministro Edson Fachin, aponta a inconstitucionalidade das regras estabelecidas pelo Convênio 100/1997 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que reduzem em 60% a base de cálculo do ICMS sobre agrotóxicos. A ADI também discute aspectos da legislação tributária que definem alíquota zero do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para alguns desses produtos, considerados prejudiciais à saúde.
Jaqueline Andrade afirma que as organizações sociais que debatem o uso de agrotóxicos esperam que os ministros que já se manifestaram a favor da constitucionalidade da isenção fiscal reconsiderem suas posições, formando uma maioria pela inconstitucionalidade dessa política.
“Os novos dados fornecidos pelo Ministério da Fazenda vêm a calhar para que o STF avalie os resultados dessa política isentiva, os impactos financeiros e orçamentários dessas medidas, e a necessária revisão dessas desonerações para produtos que representam riscos à saúde pública e ao meio ambiente nos dias de hoje”, afirma Andrade.
Até o momento, votaram a favor da manutenção das isenções os ministros Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli. Por outro lado, o relator Edson Fachin e a ministra Carmen Lúcia acolheram o argumento de inconstitucionalidade da política fiscal relacionada aos agrotóxicos.
O ministro André Mendonça sugeriu a definição de um prazo para que os governos federal e estaduais avaliem a política de renúncia fiscal, apresentando seus objetivos, resultados e o impacto que a eliminação das isenções poderia causar. Seu voto foi apoiado pelo ministro Flávio Dino.
Governo dividido
Em uma audiência pública realizada no STF no início de novembro, representantes do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do Ministério do Trabalho defenderam o fim das isenções fiscais para agrotóxicos, citando os danos ao meio ambiente e alinhando-se aos alertas da comunidade médica e científica sobre os efeitos prejudiciais do incentivo ao uso desses produtos.
“O país ainda mantém isenções fiscais para produtos com efeitos reconhecidamente danosos. Tem alíquotas reduzidas para esses produtos, criando o cenário no qual substâncias prejudiciais à saúde e meio ambiente são beneficiadas pelo regime tributário, em contradição com os compromissos internacionais já estabelecidos”, declarou Thaiane Fábio, diretora de Qualidade Ambiental do MMA.
Por outro lado, os representantes do Ministério da Agricultura (Mapa) reafirmaram o argumento do agronegócio sobre uma suposta “dependência” do uso de insumos químicos e dos eventuais impactos econômicos ao setor, caso seu uso venha a ser desencorajado pelo Estado.
“Os defensivos são fundamentais na nossa produção tropical. Nós somos um país eminentemente tropical na nossa agricultura (…) São poucas ofertas de produto e muitos produtores consumidores. Qualquer alteração de custos na matéria-prima implicaria no repasse para os produtores”, afirmou Sílvio Farnese, diretor do Departamento de Análise Econômica de Políticas Públicas do Mapa, expondo a contradição do governo federal em relação ao tema.
A posição do Mapa vai contra a do próprio presidente da República, que já se manifestou publicamente sobre a necessidade de limitar o uso de agrotóxicos na agricultura brasileira, especialmente aqueles considerados de alta toxicidade e que já foram banidos em outros países.
“Não é possível que 80% dos agrotóxicos proibidos na Alemanha possam ser vendidos aqui no Brasil, como se a gente fosse uma republiqueta de bananas”, disse Lula durante reunião com os chefes dos Três Poderes em setembro deste ano.
O Brasil de Fato contatou as empresas Syngenta, Yara Fertilizantes, BASF e Bayer, além da Braskem, mencionadas na reportagem, pedindo um posicionamento sobre a saúde e segurança dos agrotóxicos.
A Syngenta enviou nota em que afirma estar comprometida com “os mais altos padrões de integridade e responsabilidade” e quem seus produtos “desempenham papel essencial na ampliação da produtividade de alimentos com qualidade, segurança e sustentabilidade, contribuindo diretamente para a segurança alimentar”.
“À Syngenta, assim como às demais empresas produtoras de defensivos agrícolas e sementes, aplica-se o que está previsto na Lei nº 10.925/04, que prevê a aplicação de alíquota zero para o Pis/Cofins na comercialização de defensivos classificados na NCM 3808. Entre os arquivos disponíveis no site da Receita Federal, também há situações que correspondem ao que está previsto em outras leis, como: Pronac (Lei Rouanet), Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), Incentivo ao Desporto (Lei 11.438/2006) e Empresa Cidadã (Lei nº 11.770/2008), Drawback Isenção e Suspenção (Dl 37/66, Art 78,I e II), Contingenciamento (Dec. 1989/96) e Admissão Temporária (Dl 37/66, Art. 75)”, finaliza o texto.