PL insistiu em tese contra urnas eletrônicas mesmo após alerta sobre inconsistências, diz PF
O relatório da Polícia Federal sobre a suposta trama golpista durante o governo Jair Bolsonaro revela que o responsável pela auditoria do PL foi alertado por um de seus colaboradores sobre a ausência de evidências de fraude nos dados. Esses dados foram utilizados, dias depois, pelo partido para solicitar a anulação de votos de algumas urnas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Os alertas foram feitos por Eder Balbino, conhecido como o "gênio de Uberlândia" pelo presidente da sigla, Valdemar Costa Neto. Balbino colaborou com o Instituto Voto Legal, fundado pelo engenheiro Carlos Rocha, que foi contratado pelo PL para realizar a auditoria.
A Polícia Federal não esclareceu no relatório se Valdemar também foi informado sobre as inconsistências nos argumentos apresentados. Tanto Valdemar quanto Rocha foram indiciados pela PF, enquanto Balbino não sofreu indiciamento.
No dia 22 de novembro de 2022, o PL protocolou uma ação no TSE solicitando a anulação dos votos registrados em urnas de modelos anteriores a 2020. O pedido foi fundamentado na falta do código de série das urnas nos "diários de bordo", conhecidos como logs, desses equipamentos mais antigos.
"A ausência da correta identificação da urna eletrônica em cada arquivo Log torna impossível a associação do arquivo Log com a urna respectiva que o gerou e, consequentemente, com o BU [boletim de urna]", dizia o relatório assinado por Rocha.
O partido argumentava que, sem essa informação, a fiscalização das urnas não seria viável. No entanto, questionava apenas o segundo turno, apesar de a situação ter ocorrido em ambos os turnos.
A Polícia Federal destaca como evidência um arquivo no qual Balbino apresenta considerações a Rocha, afirmando que era possível correlacionar os logs das urnas com os boletins de urna e com as próprias urnas, ao contrário do que foi alegado na ação apresentada no TSE alguns dias depois.
"É possível [correlacionar o log com o boletim de urna] devido ao nome do arquivo do log gerado pela Urna. O nome do arquivo tem um padrão onde estão: o código do município, o número da zona e número da seção", dizia trecho do arquivo enviado a Rocha por Balbino dias antes de o PL contestar as urnas antigas.
De acordo com a Polícia Federal, os materiais apreendidos com Balbino "demonstraram a atuação dolosa" de Valdemar, Bolsonaro e Carlos Rocha, evidenciando que os investigados tinham plena consciência de que os "argumentos técnicos" utilizados como base para a ação eram falsos, não comprovando qualquer fraude ou irregularidade no sistema das urnas eletrônicas.
A PF ressalta que a correção não foi realizada e que houve "declarações em coletiva de imprensa do PL, propagando informações que já eram conhecidas como falsas". Essa atitude, segundo a PF, evidenciou "sua adesão ao plano golpista".
Ainda no dia 22, as alegações apresentadas na ação do PL foram contestadas por especialistas da área. No dia seguinte, em uma coletiva de imprensa, Valdemar afirmou que o problema havia sido identificado por um "gênio de Uberlândia" — cidade onde a Gaio.io, empresa da qual Balbino é sócio, possui um de seus endereços. "Ele descobriu esse problema que nossa equipe não havia encontrado. Então, fomos obrigados a apresentar isso", declarou o presidente do PL na ocasião.
A PF também informou que, antes de protocolar a ação, Valdemar trocou mensagens com Balbino, fazendo pedidos diretamente a ele.
"O objeto das conversas e trocas de mensagens são relacionadas às buscas por indícios de fraudes nas eleições, confirmando a atuação direta de Valdemar na propagação de informações falsas sobre as urnas eletrônicas."
Em depoimento prestado em março deste ano, o dirigente do PL afirmou à Polícia Federal que o partido questionou os resultados das eleições sob pressão de Bolsonaro. Ele também declarou que o instituto nunca encontrou irregularidades, contradizendo suas declarações públicas anteriores.
A investigação revela que o trabalho era orientado pela apresentação de hipóteses por Rocha a Balbino, que consistiam em "teses de indícios de fraudes que circulavam nas redes sociais". Essas hipóteses eram descartadas à medida que se mostravam infundadas.
Um exemplo disso é quando Rocha enviou um arquivo intitulado "Urnas eleições 2022 - É muito difícil justificar.pdf", acompanhado da mensagem: "Recebi em outro grupo, interessante".
A PF afirma ainda que pessoas que estavam trabalhando para o instituto de Rocha e para o PL "abasteciam com informações falsas influenciadores, como o argentino Fernando Cerimedo", para propagarem fake news sobre as urnas. Cerimedo teve grande alcance com lives alegando fraudes em 2022.
O relatório da Polícia Federal menciona uma reportagem da Folha de dezembro de 2022, que revelou que três arquivos em uma pasta do Google Drive de Cerimedo foram editados pela última vez por Balbino, antes de sua ampla divulgação. Além disso, um dos arquivos tinha como proprietário Angelo Denicoli, um major da reserva que fez parte do governo Bolsonaro.
Em fevereiro, Balbino declarou que nunca teve contato com Cerimedo e que recebeu o link do Google Drive de Paulo Geus, apresentado a ele por Rocha como colaborador do Instituto Voto Legal (IVL).
O relatório da PF também inclui trocas de mensagens nas quais Geus envia o link de uma pasta do Google Drive a Balbino. Em uma das mensagens, Geus afirma: "O argentino acho que não entendeu português, então mandei em inglês agora".
Em 2020, Cerimedo afirmou à Folha que não conhecia Balbino ou Denicoli. No relatório final, a Polícia Federal reproduz a resposta do influenciador e menciona que, apesar disso, quando Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, precisou do contato de Cerimedo, solicitou — e obteve — o contato do argentino com Denicoli.
Novamente procurado pela Folha, Cerimedo informou que não faria declarações, pois ainda está preparando sua defesa, mas reafirmou que não conhece Denicoli. Ele explicou que o militar publicou um arquivo em um drive público e afirmou não ter "nenhum relacionamento com as pessoas dessa lista".