Padres citados pela PF por incitar golpe faziam parte de ala ultraconservadora da igreja católica
O relatório de 884 páginas da Polícia Federal, que investiga a tentativa de golpe de Estado e resultou no indiciamento de Jair Bolsonaro e outras 36 pessoas, menciona quatro clérigos católicos, destacando um histórico de atuação ultraconservadora na Igreja.
Além do padre José Eduardo de Oliveira e Silva, indiciado e baseado em Osasco, o documento cita os padres Paulo Ricardo de Azevedo (Cuiabá) e Genésio Lamounier Ramos (Anápolis), bem como Gilson da Silva Pupo Azevedo, conhecido como frei Gilson, uma figura popular do catolicismo na internet. Vale ressaltar que os três últimos não estão entre os formalmente acusados pela Polícia Federal.
Juntos, eles acumulam quase 9 milhões de seguidores no Instagram, uma base construída ao longo de anos por meio de pregações em plataformas de streaming, cursos e palestras. Alguns se destacam por suas conexões com organizações internacionais de direita e políticos alinhados a Bolsonaro.
José Eduardo é mencionado 74 vezes no relatório da Polícia Federal. Segundo os investigadores, ele colaborou com o ex-assessor internacional de Bolsonaro, Filipe Martins, e o advogado Amauri Saad na elaboração de uma minuta para um golpe de Estado. O padre esteve em Brasília entre novembro e dezembro de 2022, participando da criação do documento que serviria de base para justificar a ruptura democrática. A defesa do padre afirma que as evidências apresentadas “não sustentam as ilações contra ele contidas no relatório”.
Em 3 de novembro daquele ano, José Eduardo enviou a Frei Gilson, via WhatsApp, uma “espécie de oração ao golpe”, conforme relatado pela Polícia Federal. Nela, ele pedia que todos os brasileiros, católicos e evangélicos, incluíssem em suas orações os nomes do então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, e de outros dezesseis generais, “para que Deus lhes dê a coragem de salvar o Brasil, ajude a vencer a covardia e os estimule a agir com consciência histórica, e não apenas como funcionários públicos de farda”.
Frei Gilson, que possui um canal no YouTube com 5,7 milhões de inscritos, atraiu meio milhão de pessoas durante uma entrevista ao canal do estúdio Brasil Paralelo, que é alinhado ao bolsonarismo. Ele também tem participado e promovido eventos da Canção Nova, um grupo conservador da Igreja Católica que mantém proximidade com a Brasil Paralelo.
Entretanto, essa relação chamou a atenção do Observatório da Comunicação Religiosa (OCR), vinculado ao Diretório da Comissão de Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em setembro, o OCR emitiu uma nota criticando a parceria entre a TV Canção Nova (Estúdio Anuncia-me) e o estúdio.
O aumento da audiência da Brasil Paralelo é um exemplo desse fenômeno. Padres conservadores têm utilizado cursos, oficinas, palestras e até uma plataforma de streaming para disseminar suas ideias e alcançar um público mais amplo. No site Fé Explicada, por exemplo, José Eduardo ensina sobre “confissão e moral cristã”. Já na Lumine, a “Netflix católica”, Paulo Ricardo é o protagonista de um documentário que explora o “sentido da vida”.
Paulo Ricardo é descrito por José Eduardo como um militante contra a descriminalização do aborto. No capítulo que aborda a elaboração do decreto golpista, o relatório da Polícia Federal ressalta a estreita relação entre José Eduardo e Filipe Martins, que atuava no Palácio do Planalto.
Alguns párocos mantêm relações estreitas com lideranças bolsonaristas. José Eduardo, por exemplo, compareceu à posse de Bolsonaro e se encontrou diversas vezes com parlamentares como Eduardo Bolsonaro, Chris Tonietto e Damares Alves. Paulo Ricardo, em uma visita ao ideólogo da extrema direita brasileira, Olavo de Carvalho, nos Estados Unidos, em 2015, chegou a tirar uma foto com o guru segurando uma arma de fogo.
O padre Genésio, por sua vez, foi ao Palácio da Alvorada em dezembro de 2022 para rezar com Bolsonaro, em meio à turbulência que o Brasil enfrentava, com manifestações por todo o país pedindo ruptura democrática e intervenção militar. No dia seguinte à sua visita ao então presidente, Genésio incitou bolsonaristas em um acampamento golpista a "pararem o País".
“Nos grupos, (é para) pedir que venham para Brasília, para o QG (do Exército). Ocupemos todas as ruas de Brasília. As Forças Armadas são a última linha de defesa entre o comunismo e a sociedade de bem. Não só caminhoneiros, mas todo mundo que puder parar o Brasil e vir para Brasília, agora é a hora (...) A nossa meta é a liberdade, é colocar na cadeia bandidos. (Criminosos), ou mudem de vida, ou mudem de País”, discursou Genésio.
Os investigadores descobriram que José Eduardo tinha o contato de Bolsonaro salvo em seu telefone desde 2013, período em que o padre começou a estreitar laços com movimentos políticos. Em novembro daquele ano, ele palestrou ao lado do espanhol Ignacio Arsuaga, presidente da HazteOir, em um workshop que chamou de “célebre”, sobre “como construir com êxito um movimento social”.
A HazteOir é uma fundação dedicada à formação de ativistas em pautas ultraconservadoras, como a criminalização do aborto e da eutanásia. Em 2013, a HazteOir fundou a CitizenGO, uma organização que promove petições e abaixo-assinados para causas da direita. Em março de 2014, José Eduardo compartilhou uma foto em seu Instagram, mostrando que entregou “milhares de assinaturas recolhidas pela CitizenGO” ao então deputado federal Izalci Lucas. Em 2020, ele voltou a divulgar uma campanha da organização.
Paulo Ricardo também contribuiu para a divulgação de petições da HazteOir. Em 21 de março de 2014, ele postou em sua conta no Twitter: “Ideologia de gênero na educação? Não, obrigado! Assinem a petição”.
Tanto a HazteOir quanto a CitizenGO foram mencionadas em um estudo do Fórum Parlamentar Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos, que aborda “financiadores extremistas religiosos” contra os direitos humanos relacionados à sexualidade e saúde reprodutiva na Europa, lançado em 2021. O documento detalha como atores de diversas partes do mundo, incluindo oligarcas russos, têm financiado iniciativas anti-gênero no continente.
Já o advogado de José Eduardo, Miguel Vidigal, diz que “o relatório da Polícia Federal retratou a verdade sobre a participação do padre José Eduardo nos supostos atos golpistas: ficou evidente que as provas apresentadas não corroboram as ilações contra ele contidas no relatório”.
“O religioso não teve qualquer participação em atos que visassem a quebra da Ordem Constitucional, não participou da escrita de qualquer minuta e nem poderia, pois lhe falta capacidade jurídica para tanto. Também não esteve em qualquer acampamento ou encontro que tivesse por intuito aplicar um golpe de Estado no país. Suas idas a Brasília (que ocorrem desde 2013, quando voltou a residir no país) se limitaram a fazer atendimentos espirituais e a rezar, nada além disso”, afirma o advogado.