Donos de bets usam empresas no exterior com bicheiros e doleiros para ocultar rendimentos
Empresários brasileiros do setor de apostas abriram empresas no Panamá e na Flórida, envolvendo doleiros e pessoas ligadas ao jogo do bicho. As apostas em questão estão entre as principais do Brasil e acumulam centenas de milhares de seguidores no Instagram. Ambas operam com autorização do Ministério da Fazenda, e uma delas conta com o apresentador Ratinho e o cantor Wesley Safadão como divulgadores.
Em entrevista, um dos empresários afirmou que a empresa no Panamá nunca chegou a operar e negou qualquer relação com contraventores. O outro empresário não respondeu aos questionamentos. Ratinho e Wesley Safadão também foram contatados; o apresentador não respondeu, enquanto Wesley Safadão, por meio de sua assessoria, declarou não conhecer detalhes sobre a vida do proprietário da aposta que ele divulga. O Ministério da Fazenda, por sua vez, informou que não comenta sobre casos de empresas individuais.
As empresas de apostas Marjosports e Multibet receberam os números 93 e 62, respectivamente, na lista de autorizadas pelo Ministério da Fazenda. A Marjosports é de propriedade do empresário pernambucano Jorge Barbosa Dias, enquanto a Multibet foi fundada pelo mineiro Ricardo Rezende Soares Oliveira.
Jorge Barbosa Dias esteve envolvido em duas offshores, uma no Panamá e outra na Flórida, em parceria com Waldenio Carneiro de Farias, um consultor acusado pela Polícia Federal de atuar como doleiro. Por sua vez, Ricardo Rezende, proprietário da Multibet, também teve duas offshores no Panamá, em sociedade com José Ângelo Beghini de Carvalho, ex-sócio e figura influente do contraventor Carlinhos Cachoeira. Atualmente, Beghini mantém uma offshore com os herdeiros de um dos principais bicheiros do Rio de Janeiro. Além da Multibet, Ricardo Rezende possui autorização para operar uma empresa de jogos de azar no Maranhão.
As offshores de Ricardo Rezende foram constituídas em outubro de 2015 no Panamá e são chamadas BRTech Enterprises Corporation e Global Enterprises and Events S.A., ambas em parceria com Ângelo Beghini de Carvalho, ex-sócio de Carlos Augusto Ramos, conhecido como Carlinhos Cachoeira. Cachoeira, preso em 2012 por explorar máquinas de caça-níquel em Goiás, também foi o pivô da CPI dos Correios em 2005, ocasião em que José Ângelo foi convocado a depor.
De acordo com Ricardo Rezende, a BRTech foi criada para explorar a atividade de jogos no Panamá, mas nunca chegou a operar. Embora a empresa apareça como ativa nos registros públicos, a Global Events está registrada como suspensa. Rezende afirmou que a empresa está realmente suspensa e nunca funcionou. “Contratei Beghini porque ele era especialista nesse setor (empresas de jogos)”, declarou Rezende ao Estadão. Ele também afirmou que desconhecia o envolvimento de Beghini com Carlinhos Cachoeira, apesar das investigações relacionadas à CPI dos Correios.
Em 2019, Beghini foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) do Distrito Federal por improbidade administrativa, suspeitando-se que ele tivesse se associado a auditores da Receita Federal para importar máquinas de caça-níquel disfarçadas como computadores. O MPF alegou que Beghini foi “um dos principais beneficiários e mentor da fraude” que permitiu a importação das máquinas, com a intenção de trazer 3,6 mil unidades.
Em resposta à reportagem, Beghini afirmou que não faria comentários. Ele disse que o processo relacionado às máquinas caça-níqueis foi encerrado anos atrás e que a offshore no Panamá nunca operou. “Também não tenho nenhuma ligação com bets ou empresas do gênero no Brasil”, disse ele.
Além de suas atividades nas apostas, Ricardo Rezende possui negócios em outros setores e mantém boas relações no meio político. Seu casamento, realizado em 2011, contou com a presença do senador Ciro Nogueira (PP-PI), autor de um dos projetos para a legalização dos jogos de azar no Brasil, além dos deputados federais Fred Costa (PRD-MG) e Antônio Roberto (1942-2022). Como destacou o Estadão, Ciro Nogueira é um dos principais representantes da “bancada das bets”. Os parlamentares não comentaram sobre o assunto.
Após sua associação com Ricardo, Beghini parece ter se juntado a outro grupo no setor de apostas: o das famílias ligadas ao jogo do bicho. Em maio deste ano, ele fundou uma empresa na Flórida em parceria com Luiz Antônio Lourenço Drummond, filho e herdeiro de Luiz Pacheco Drummond, conhecido como Luizinho Drummond (1940-2020).
Beghini e Drummond são sócios na empresa Lab Monitoring and Services LLC, localizada em Kissimmee, nos arredores de Orlando, onde Beghini reside atualmente. Em 2013, Luiz Antônio foi preso em um condomínio de luxo em Belém (PA), sob a acusação de liderar o jogo do bicho no estado.
Luizinho Drummond, pai de Luiz Antônio, foi um dos principais bicheiros do Rio de Janeiro e exerceu a presidência da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, além de ter liderado a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Em 1993, ele foi condenado pela juíza Denise Frossard, junto com outros banqueiros do jogo do bicho, por 53 assassinatos relacionados a disputas dentro do jogo. A reportagem do Estadão não conseguiu entrar em contato com Luiz Antônio.
Investigado por lavagem e investidor da vaquejada
Outro empresário do setor de apostas com empresas internacionais é Jorge Barbosa Dias, proprietário da Marjo Sports. Essa plataforma de apostas é bastante conhecida nas redes sociais, com 423 mil seguidores no Instagram. O garoto-propaganda da Marjo é o apresentador de TV e ex-deputado Carlos Roberto Massa, conhecido como Ratinho, pai do atual governador do Paraná, Ratinho Júnior (PSD). O cantor Wesley Safadão também já promoveu a Marjosports em suas redes sociais. Embora o empresário republicano e Ricardo tenham tido um sócio em comum, o mineiro afirma não conhecer Jorge Barbosa Dias.
Baseado em Recife (PE), Jorge Barbosa Dias está sendo investigado desde 2018 pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) por supostamente lavar dinheiro proveniente de jogos de azar. Em 2021, ele foi alvo da operação Game Over do MPPE e, em 2022, foi denunciado. Juízes da primeira instância em Taquaritinga do Norte (PE) concederam um habeas corpus criminal a favor dele, permitindo que o caso fosse reaberto para nova investigação. A reportagem do Estadão tentou contatar Jorge Barbosa Dias, mas não obteve resposta.
Entre 2017 e 2020, Jorge Barbosa Dias manteve duas empresas offshore em parceria com Waldenio Carneiro de Farias, um consultor de empresas mencionado pela Polícia Federal como parte de uma rede de “doleiros” no relatório da Operação Amphis, de 2020. Uma das empresas estava sediada no Panamá e se chamava Marjosports SA, enquanto a outra, localizada na Flórida, tinha um nome similar: Marjo Group LLC. Em Pernambuco, Waldenio já foi investigado por lavagem de dinheiro e organização criminosa, juntamente com Jorge Barbosa Dias.
Além de atuar no setor de apostas, Jorge Barbosa Dias possui negócios em diversas áreas, incluindo construção, agropecuária, veículos e postos de gasolina. Em 2021, ele e os proprietários da Pixbet se uniram para fazer uma oferta de R$ 15 milhões por um cavalo lendário da vaquejada, chamado Dom Roxão. Essa foi a maior proposta por um animal no mundo da vaquejada nos últimos anos, mas o proprietário do garanhão recusou a oferta. Dom Roxão faleceu em janeiro deste ano.
O que são ‘offshores’
Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional no Brasil, explica que o termo "offshore" se refere a empresas registradas no exterior. Um uso legítimo dessas empresas é para reduzir ou evitar o pagamento de impostos, prática conhecida como "planejamento tributário".
No entanto, as offshores também podem ser utilizadas para atividades ilícitas, como o pagamento e recebimento de propinas, ou para ocultar os frutos de atividades criminosas. "Atividades como tráfico de drogas, tráfico de armas ou jogos ilegais exigem que o dinheiro seja escondido e, posteriormente, lavado para retornar à economia formal", afirma Brandão. Ele ressalta que as offshores são frequentemente empregadas para ocultar valores.
Nos Estados Unidos, é comum o uso das chamadas "LLCs" (Limited Liability Company ou Companhia de Responsabilidade Limitada), que são frequentemente utilizadas para transferências de valores ou aquisição de imóveis, devido à sua estrutura mais simples em comparação com uma corporação. Muitas vezes, essas empresas existem apenas no papel, sendo também conhecidas como "shelf companies" (empresas de gaveta).
De acordo com a advogada Fernanda Magalhães, do escritório de advocacia Kasznar Leonardos, é provável que nem todas as plataformas de apostas atualmente em operação consigam obter a autorização definitiva. “Muitas delas, provavelmente, não terão. O que a gente vê dos comentários da própria secretaria (de Prêmios e Apostas) é que nem todas serão aprovadas”, diz ela, que é especialista em Direito do marketing e entretenimento.