Quero um médico para chamar de meu
Não podemos reduzir o médico a um prestador de serviços, nem o paciente a um número ou um exame laboratorial
Por Ludhmila Hajjar - Em tempos de avanços tecnológicos vertiginosos e diagnósticos auxiliados por inteligência artificial, a relação médico-paciente parece, paradoxalmente, mais frágil do que nunca. As filas no sistema público crescem, os convênios limitam consultas a minutos cronometrados, e a figura do médico que conhece não apenas a doença, mas o indivíduo, parece estar desaparecendo. Onde está aquele médico para chamar de “meu”?
Antigamente, havia o clínico geral da família, o médico que acompanhava a criança com febre, o adulto com insônia, e o idoso com dores que só ele compreendia porque conhecia a história daquela vida. Hoje, somos consumidos por especializações. Precisamos de um cardiologista para o coração, um neurologista para a memória, um dermatologista para a pele – e nos perdemos em fragmentos. Mas será que um ser humano pode realmente ser tratado em pedaços?
A ciência nos trouxe conquistas extraordinárias. Vivemos mais, superamos doenças que eram sentenças de morte e temos ferramentas que revolucionaram o cuidado em saúde. No entanto, a medicina é muito mais do que ciência: ela é também arte. É um olhar atento, uma escuta sem pressa, um toque no ombro que transmite segurança. É essa conexão que humaniza a prática e fortalece a confiança no tratamento.
A falta de tempo – tanto no sistema público quanto no privado – é um dos grandes inimigos dessa relação. Médicos sobrecarregados e pacientes insatisfeitos estão em lados opostos de um sistema que muitas vezes desumaniza ambos. A tecnologia, que deveria ser aliada, por vezes distancia: trocamos olhares por telas, e histórias de vida por prontuários eletrônicos.
Outro ponto central é a remuneração do médico. Não há como garantir um cuidado humanizado e de qualidade quando o profissional de saúde é pressionado a atender um número excessivo de pacientes em um curto período. No Brasil, muitos médicos recebem valores incompatíveis com a responsabilidade e complexidade de seu trabalho, seja no setor público ou em convênios que pagam por consultas valores irrisórios. Essa desvalorização não apenas afeta o bem-estar do profissional, mas também compromete a qualidade do atendimento ao paciente. Para que o médico possa exercer sua função com excelência, é imprescindível que sua remuneração seja digna, justa e proporcional à sua formação e dedicação.
Mas há uma luz no horizonte. Programas que incentivam o fortalecimento do médico de família têm mostrado resultados promissores. Quando há continuidade no cuidado, com um profissional que compreende não apenas a biologia, mas também o contexto social e emocional do paciente, os resultados são melhores. E não é só isso: pacientes que se sentem acolhidos e escutados confiam mais no tratamento e seguem orientações de maneira mais eficaz.
A medicina precisa resgatar esse vínculo. Não podemos reduzir o médico a um prestador de serviços, nem o paciente a um número ou um exame laboratorial. Precisamos de uma relação em que o profissional de saúde seja visto como alguém que caminha ao lado do paciente, ajudando a trilhar o caminho da cura, da prevenção e do cuidado.
O médico ideal, aquele para chamar de “meu”, é humano antes de tudo. Ele reconhece a força da ciência, mas não abre mão da empatia. Ele entende que, por trás de cada sintoma, existe uma história única. É preciso coragem para lutar contra a desumanização do cuidado em saúde. É preciso tempo, dedicação e, acima de tudo, vontade de fazer diferente.
E você, já encontrou um médico para chamar de seu? Se não, talvez esteja na hora de exigir mais – do sistema, dos profissionais, e até de nós mesmos, como pacientes. Porque no fim, todos nós merecemos um cuidado que vá além do corpo, que alcance a alma.