Como surgiu a Ficha Limpa e por que agora há o interesse em revogar?
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A Lei da Ficha Limpa está enfrentando ataques e tentativas de desidratação no Congresso Nacional. Aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) apresentaram projetos de lei que visam alterar e suavizar pontos fundamentais da legislação, como o período de inelegibilidade de oito anos para políticos condenados. O próprio Bolsonaro propõe a revogação total da lei.
O deputado federal Bibo Nunes (PL-RS) sugeriu reduzir o tempo de inelegibilidade de oito para apenas dois anos, o que beneficiaria diretamente Bolsonaro. Atualmente inelegível após ser condenado em junho de 2023 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ex-presidente poderia, se a alteração for aprovada e ele não enfrentar novas condenações criminais, concorrer nas eleições de 2026.
Outro projeto, apresentado pelo deputado Hélio Lopes (PL-RJ), propõe que apenas aqueles com condenação penal possam ser considerados inelegíveis por abuso de poder político ou econômico. No caso de Bolsonaro, sua condenação é classificada como extrapenal ou de natureza cível eleitoral.
O advogado e ex-juiz Márlon Reis, um dos criadores da Lei da Ficha Limpa, observa essa movimentação no Congresso com preocupação.“É assustador o que está acontecendo, porque não estamos falando de ajustes simples, mas de medidas que inviabilizam a inelegibilidade prevista na lei. Ela deixará de ter eficácia”, avalia.
O surgimento
A Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135 de 2010) nasceu a partir de uma mobilização popular que conseguiu reunir mais de 1,6 milhão de assinaturas, contando com a participação de diversas entidades e instituições que representam vários setores da sociedade. A principal intenção desse texto legislativo é barrar a candidatura de indivíduos considerados "fichas sujas", isto é, aqueles que foram condenados por tribunais colegiados.
“Foram mais de dois anos de discussão da minuta do projeto de lei até a aprovação no Congresso. As mais de 1 milhão e 622 mil assinaturas representam o intenso debate que foi travado na profundidade do Brasil”, diz Márlon Reis. As regras estipuladas pela Lei da Ficha Limpa começaram a valer nas eleições municipais de 2012.
Desde então, milhares de candidatos de diferentes espectros políticos foram afastados das urnas devido a condenações. A lei fundamenta-se no parágrafo nono do artigo 14 da Constituição Federal, que estabelece a inelegibilidade como um mecanismo de proteção à probidade administrativa e à moralidade no exercício de mandatos. Reis ressalta que “a gravidade que levou à criação da lei não deixou de existir”, pelo contrário. “Não há razão para flexibilizar uma lei que sequer conseguiu debelar a sua razão de existir. A inelegibilidade não faz sentido se não puder deixar a pessoa submetida a condenação afastada do processo eleitoral por alguns períodos. Se há um retorno imediato, temos uma fraude à Constituição”, diz ele.
Lula e Bolsonaro sob a Lei da Ficha Limpa
O TSE ainda não apresentou um relatório detalhado sobre o número de pessoas que foram afetadas pela Lei da Ficha Limpa ao longo do tempo. Contudo, um levantamento realizado pelo Metrópoles indicou que, nas últimas cinco eleições, esse número ultrapassou 6,8 mil. Na eleição de 2018, por exemplo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na época encarcerado, teve seu registro de candidatura negado pelo plenário do Tribunal.
Recentemente, Bolsonaro se juntou ao debate nas redes sociais, manifestando-se a favor da revogação da lei e utilizando o seguinte argumento:
“A Lei da Ficha Limpa serve apenas para perseguir a direita”. Márlon Reis diz que essa afirmação é “completamente falsa” e que tem por objetivo “mobilizar a base mais fanática” do bolsonarismo.
“[A afirmação de Bolsonaro] é tão superficial que ele próprio foi eleito em 2018 com o Lula impedido de se candidatar, justamente, pela Lei da Ficha Limpa. Ele, talvez, tenha sido o maior beneficiado pela lei, pois foi eleito sem concorrente. A Lei da Ficha Limpa afeta a todos, de qualquer espectro político, porque tem normas abstratas. Ela não fala de partido. Fala de elementos objetivos, independentemente da sigla”, contrapõe o advogado.
Até esse momento, a Lei da Ficha Limpa já barrou várias candidaturas, tornando inelegíveis candidatos a cargos como vereador, prefeito, vice-prefeito, deputados estaduais, federais e distritais, governador, senador e presidente da República.