Prontuário eletrônico inteligente: a revolução necessária
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Por Ludhmila Hajjar- A medicina nasceu do contato humano. O olhar atento, a escuta sensível, o toque clínico e a presença constante do profissional de saúde são elementos fundamentais para um atendimento de qualidade. No entanto, a realidade atual nos hospitais e unidades de saúde revela um cenário preocupante: médicos, enfermeiros e fisioterapeutas passam mais tempo preenchendo prontuários eletrônicos e lidando com burocracia digital do que ao lado dos pacientes.
Essa inversão de prioridades é um erro grave e compromete diretamente a segurança e a qualidade da assistência. Estudos mostram que, em muitas instituições, profissionais da saúde gastam entre 50% e 60% do seu tempo na frente de telas, preenchendo formulários, registrando dados e interagindo com sistemas eletrônicos, enquanto o tempo real dedicado à interação com os pacientes diminui cada vez mais. Esse modelo desumaniza o atendimento, aumenta a fadiga dos profissionais e prejudica os desfechos clínicos.
A digitalização da medicina trouxe inegáveis avanços, mas também desafios. Um dos maiores paradoxos da era tecnológica é que, enquanto os profissionais de saúde se veem sobrecarregados pelo preenchimento manual de prontuários eletrônicos lentos e burocráticos, os hospitais ainda não utilizam plenamente o potencial da automação e da inteligência de dados para salvar vidas em tempo real.
Precisamos defender uma nova geração de prontuários eletrônicos inteligentes, capazes de integrar sinais vitais, monitorar o estado clínico dos pacientes e acionar alarmes automáticos diante de deteriorações. Um sistema desse tipo não apenas reduziria a carga burocrática dos médicos e enfermeiros, mas aumentaria exponencialmente a segurança do paciente, prevenindo complicações e reduzindo eventos adversos evitáveis.
Imagine um hospital onde os sinais vitais dos pacientes — pressão arterial, frequência cardíaca, saturação de oxigênio, temperatura e padrões respiratórios — são coletados continuamente por sensores e dispositivos de monitoramento, enviados automaticamente para o prontuário e analisados por algoritmos inteligentes. Qualquer deterioração silenciosa, como a queda progressiva da saturação em um paciente com pneumonia, poderia gerar um alerta imediato para a equipe médica antes que a situação se tornasse crítica.
Essa tecnologia já existe e precisa ser incorporada como padrão na rede hospitalar brasileira. Hospitais com monitoramento contínuo e prontuários inteligentes registram redução significativa de eventos adversos, como sepse não diagnosticada a tempo, insuficiência respiratória e deterioração hemodinâmica. Além disso, o uso de alarmes programáveis reduz a fadiga da equipe médica, permitindo que o tempo dos profissionais seja dedicado ao que realmente importa: o contato direto com o paciente e a tomada de decisões baseadas em dados precisos.
Não se trata de substituir a avaliação clínica, mas de aprimorá-la. A medicina do futuro será aquela que alia humanização e tecnologia, conectando médicos, enfermeiros e pacientes em um sistema de inteligência contínua e proativa. Precisamos defender esse modelo agora — porque cada segundo faz diferença na vida de quem está em risco.
A conectividade entre monitores multiparamétricos, ventiladores mecânicos, bombas de infusão e outros dispositivos médicos de diferentes fabricantes é um dos grandes desafios da digitalização hospitalar. Para que um prontuário eletrônico inteligente funcione de maneira eficaz, garantindo monitoramento contínuo e alarmes automáticos, é essencial que todos esses equipamentos conversem entre si.
A solução está na interoperabilidade, ou seja, na capacidade dos dispositivos e sistemas de compartilharem dados de forma segura e padronizada. Esse processo envolve protocolos universais, integrações via middleware e o uso de padrões internacionais.
Atualmente, existem padrões reconhecidos globalmente que permitem a troca segura de dados entre equipamentos médicos: HL7 (Health Level 7): Padrão para transmissão de dados clínicos entre sistemas hospitalares e prontuários eletrônicos; FHIR (Fast Healthcare Interoperability Resources): Evolução do HL7, permite integração mais ágil e baseada em APIs; DICOM (Digital Imaging and Communications in Medicine): Para imagens médicas e integração com equipamentos de radiologia, e, IEEE 11073: Especificação para comunicação entre dispositivos como monitores de sinais vitais, ventiladores e bombas de infusão.
Esses padrões garantem que dispositivos de marcas diferentes possam compartilhar informações de maneira confiável e segura.
Para que o Brasil tenha um prontuário eletrônico inteligente e universal, é fundamental garantir a interoperabilidade dos dispositivos médicos. Sem isso, continuaremos com dados fragmentados e sistemas ineficientes. O investimento nessa integração é essencial para um modelo de saúde mais moderno, seguro e acessível. O futuro da saúde não está na digitalização excessiva, mas sim no equilíbrio entre inovação tecnológica e humanização do cuidado.
Se quisermos um sistema de saúde mais eficiente e seguro, devemos inverter a equação: menos tempo de tela, mais tempo de presença, escuta e cuidado.