Acumular ou desapegar? Entenda por que guardar tem a ver com envelhecer

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Acumular ou desapegar? Entenda por que guardar tem a ver com envelhecer reprodução

Recentemente, ajudei minha mãe a organizar caixas herdadas após o falecimento dos meus avós. Uma delas estava rotulada, de forma irônica ou genuína, como "porta-palitos e outros tesouros". Dentro dela, encontramos várias lembranças, embora nenhum porta-palitos.

O item que mais me tocou foi uma única peça de quebra-cabeça, que me fez recordar a mania da minha avó de esconder a última peça de cada jogo, para que pudesse aparecer no final e completar a imagem.

Após horas relembrando momentos do passado, minha mãe e eu descartamos 90% do que organizamos. “Por que guardei isso?” é uma pergunta que ouço frequentemente – tanto de familiares e amigos quanto de meus pacientes. Como psicóloga clínica com foco no transtorno de acumulação, especialmente em adultos com 60 anos ou mais, reflito muito sobre essa questão.

Por que guardamos coisas?
O transtorno de acumulação é um distúrbio psiquiátrico caracterizado pela compulsão de guardar objetos e pela dificuldade em descartá-los. Quando em níveis graves, isso pode causar desordem significativa, afetando o funcionamento da casa e até criando riscos como incêndios. No entanto, em minha experiência, muitos enfrentam a bagunça sem atender aos critérios clínicos para o transtorno.

Guardar objetos com valor sentimental ou que possam ser úteis no futuro é natural com o tempo. Para algumas pessoas, essa tendência se intensifica, eventualmente levando ao transtorno de acumulação. O envelhecimento pode influenciar essa dinâmica, pois mudanças nas funções executivas do cérebro dificultam a tomada de decisões, afetando também a organização do lar.

Tradicionalmente, acredita-se que a dificuldade de se desfazer dos objetos vem da angústia ao tomar decisões. Contudo, minha pesquisa sugere que esse fator pode ser menos relevante para os mais velhos.

Durante minha pesquisa de pós-graduação, pedimos a adultos com transtorno de acumulação para escolher itens para manter ou descartar. A maioria optou por papéis, como cartas ou anotações. Descobrimos que os participantes mais velhos mostravam menos estresse para tomar essas decisões e relataram emoções positivas ao organizar seus objetos.

Em outro estudo recente, com adultos acima de 50 anos, observamos que o altruísmo – o desejo de ajudar os outros – pode explicar por que algumas pessoas guardam itens que outros descartariam. Descobrimos que pessoas com transtorno de acumulação têm escores significativamente mais altos de altruísmo.

Essa explicação também aparece frequentemente na minha prática clínica, quando muitos pacientes justificam o ato de guardar itens com um senso de responsabilidade, seja pelo objeto ou pelo impacto ambiental de descartá-lo. “Quero que isso tenha um bom destino” e “minha avó me deu isso” são desculpas comuns. Ou seja, as pessoas podem manter objetos, não por medo de perdê-los, mas porque acreditam que isso é coerente com seus valores.

Valores como guia
Em um estudo de 2024, minha equipe demonstrou que uma abordagem baseada em valores ajuda idosos a reduzir a desordem e melhorar seu bem-estar emocional.

Durante seis semanas, visitamos semanalmente as casas dos participantes, utilizando uma técnica chamada entrevista motivacional, que os ajudava a refletir sobre suas decisões ao organizar seus objetos.

Descobrimos que identificar os valores pessoais ajudava a manter o foco nos objetivos de longo prazo. Muitas vezes, as pessoas se concentram no prazer imediato que um objeto traz e esquecem de avaliar seu significado e propósito mais amplos.

Valores são as crenças que usamos para definir nossos objetivos e podem incluir família, fé, praticidade, criatividade, entre outros.

Como os valores são subjetivos, o que cada pessoa decide manter também o é. Por exemplo, o vestido que usei no casamento da minha irmã me traz boas lembranças. No entanto, quando ele deixou de servir, eu o doei, pois isso estava mais alinhado com meus valores de utilidade e generosidade, permitindo que outra pessoa o usasse. Alguém que valoriza mais a família e a estética, por outro lado, poderia decidir mantê-lo por seu significado afetivo.

Além disso, ao ajudar alguém a organizar a casa, é mais eficaz refletir sobre as razões para descartar um objeto, em vez de questionar a necessidade de mantê-lo. É importante pensar sobre os objetivos que a pessoa deseja alcançar no ambiente.

Dicas para se livrar do excesso
Baseado em minha pesquisa sobre entrevista motivacional e em um ensaio clínico em andamento, reuni algumas dicas práticas para quem quer organizar sua casa. Embora meu trabalho se concentre em idosos, essas estratégias podem ser úteis para qualquer idade.

Defina seus valores por escrito. Cada objeto em sua casa deve estar alinhado com o que é importante para você. Se tradição e fé são valores centrais, pode ser sensato manter um livro de receitas antigo, enquanto um livro comprado impulsivamente pode ser mais fácil de descartar.

Estabeleça metas para o espaço que está organizando. Quer liberar a mesa para trabalhar melhor ou criar um espaço na cozinha para cozinhar com seus netos? Essas metas ajudam a manter a motivação.

Lembre-se de que seus valores podem entrar em conflito. Quando isso acontecer, reflita sobre qual decisão a aproxima mais dos seus objetivos para o ambiente.

Respeite a subjetividade dos valores. Ao ajudar alguém, mantenha uma atitude curiosa e sem julgamentos. Onde você vê uma caixa de tralhas, sua avó pode enxergar “porta-palitos e outros tesouros”.




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